Conversa a propósito dos 150 anos do Manifesto

Os 150 anos do MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA

Conversa com Francisco Melo e José Barata-Moura

Cumprem-se este ano 150 anos sobre a escrita e a publicação de um texto fundamental para o movimento operário mundial – o Manifesto do Partido Comunista, da autoria conjunta de Karl Marx e Friederich Engels. Associando-se às comemorações deste aniversário, o nosso jornal promoveu uma conversa com os nossos camaradas Francisco Melo e José Barata-Moura, que dirigiram a edição recentemente lançada pelas Edições Avante! e que nos falam não apenas da história e da importância que o documento teve para a clarificação teórica e para a organização da luta do proletariado ao longo de século e meio mas também da sua actualidade nos dias de hoje.

Uma nova edição e a sua história

FRANCISCO MELO — Em 1975 publicaram as Edições «Avante!», sob a direcção científica de Magalhães-Vilhena, uma edição do Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels.

Como se dizia no texto inicial «Ao Leitor», tratava-se da primeira tradução «em língua portuguesa, legal ou não, em Portugal ou no Brasil (pelo menos que saibamos), estabelecida directamente sobre os originais, em alemão e inglês».

Desta tradução, acompanhada de «Notas Complementares» de Magalhães-Vilhena que deverão ser consultadas para um estudo aprofundado do Manifesto, foi publicada, em 1982, uma versão revista, integrada no tomo I das Obras Escolhidas de Marx-Engels.

Encontrando-se esgotadas aquelas duas edições, recentemente, uma versão da última, novamente revista, foi publicada, em separado, pelas Edições «Avante!».

Porquê esta sucessão de revisões? No já mencionado texto «Ao Leitor» dizia Magalhães Vilhena sobre a tradução editada sob a sua orientação científica: «[…] porque temos consciência da dificuldade imensa da tarefa, sabemos que por hoje não se pode tratar aqui senão de uma tentativa – e o que é mais: de uma primeira tentativa, para a qual nenhuns trabalhos preparatórios, mesmo parciais, abriram de algum modo o caminho. Só do esforço colectivo de elaboração, paciente e longo, resultará, num dia que é de desejar próximo, a edição portuguesa que o imortal Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, exige dos investigadores marxistas de expressão portuguesa». As sucessivas traduções revistas publicadas pelas Edições Avante! têm pretendido ser passos no caminho da concretização da orientação e da exigência apontadas por Magalhães-Vilhena.

JOSÉ BARATA-MOURA — O Manifesto do Partido Comunista foi publicado pela primeira vez em Londres, na segunda metade de 1848, sem indicação de autoria. O manuscrito original não foi até hoje encontrado, e apenas nos restam duas peças de rascunho. A redacção é de Marx. E há até uma indicação quase anedótica – é que, em 24 de Janeiro de 1848, a direcção central da Liga dos Comunistas avisa que, se Marx não enviar o texto para Londres até 1 de Fevereiro, «ulteriores medidas serão contra ele tomadas», e que deverá devolver a documentação que foi posta à sua disposição para a redacção.

Em 1850, Marx dá também a entender que é o autor do Manifesto, numa declaração sobre a interpretação de posições suas que faz uma revista de Frankfurt.

No entanto, do ponto de vista substancial, o Manifesto é uma obra comum, de Marx e de Engels. No 2º Congresso da Liga dos Comunistas, em finais de 1847, Marx e Engels tinham sido encarregues de formular os novos princípios fundamentais do movimento. E em 1850, numa nota a uma publicação parcial do Manifesto, Marx e Engels declaram-se autores do texto.

É importante ter em conta que, no quadro da colaboração conjunta de Marx e de Engels, a partir de 1844, e no quadro também da reorganização e relançamento da Liga dos Comunistas, em 1847, Engels havia composto já uns Princípios do Comunismo, em forma de perguntas e respostas. E de facto muita da matéria que aparece no Manifesto está também presente em textos anteriores e em intervenções, quer de Marx, quer de Engels.

Outro dado a ter também em conta é que o formato do Manifesto, e o próprio título, são sugeridos por Engels numa carta a Marx, de 23/24 de Novembro de 1847.

Significado e necessidade do Manifesto

FRANCISCO MELO — Na primeira página do Manifesto pode ler-se: «Já é tempo de os comunistas exporem abertamente perante o mundo inteiro o seu modo de ver, os seus objectivos, as suas tendências, e de contraporem à lenda do espectro do comunismo um Manifesto do próprio partido.» Parece-me, pois, que tinha razão Labriola quando, em 1895, dizia: «De aqui [ou seja, do Manifesto] começa o socialismo estritamente moderno.» E acrescentava: «Aqui está a linha de delimitação de tudo o resto.»

Na verdade, ao dotar a classe operária de um programa próprio, Marx e Engels terminavam o processo de formação da primeira organização revolucionária internacionalista do proletariado. É isto que marca uma viragem decisiva na história do movimento operário e terá nele uma influência sem precedentes porque proclamava pela primeira vez a tarefa revolucionária da classe operária: pôr fim ao modo de produção capitalista, acabar com a exploração do homem pelo homem, constituir uma sociedade sem classes, uma sociedade verdadeiramente humana. E esta tarefa não aparecia como a expressão do desejo de realização de qualquer secular sonho dos homens, mas (e aqui está o novo, a tal «linha de demarcação»), como resultado do conhecimento das leis e tendências do desenvolvimento social.

O Manifesto veio, pois, fornecer aos proletários organizados «em partido político» uma teoria de vanguarda; por isso se diz que, com ele, o socialismo científico se funde com o movimento operário, conferindo-lhe um carácter verdadeiramente revolucionário. Fusão necessária, que Lénine exprimirá, no começo do século, na célebre frase do seu Que Fazer?: «Sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário.»

Intervir sobre a realidade

JOSÉ BARATA-MOURA — O Manifesto não é uma obra de gabinete, nem de intelectuais isolados que se alarmam com o curso dos acontecimentos e condoem pela sorte dos trabalhadores, congeminando propostas de salvação.

O Manifesto surge na base de uma realidade conflitual em desenvolvimento e de diferentes esforços de a compreender e sobre ela intervir. Surge de dentro de um movimento, o movimento operário e, em particular a Liga dos Comunistas, em busca de clarificação teórica e de reorganização operativa.

Do ponto de vista subjectivo, da mobilização de pensamento transformador e de forças sociais em condições de o realizar, o Manifesto representa um momento alto daquele propósito de congregar, como Marx tinha escrito numa carta a Arnold Ruge em 1843, «recrutas para o serviço da humanidade nova», fazendo convergir numa luta comum aquilo a que ele chama «a humanidade que sofre e que pensa» e «a humanidade que pensa e que é reprimida».

Nos Anais Franco-Alemães, de 1844, Marx falará do encontro crítico e revolucionador das «armas espirituais» da filosofia e das «armas materiais» do proletariado.

No entanto, a perspectiva porventura mais inovadora e fecunda do Manifesto reside no ensaio de inserir a dimensão política e revolucionária da luta social no processo que constitui a própria textura material da história que as colectividades humanas – não apenas no plano económico – vão modelando e transformando pelo seu trabalho.

É por isso que o comunismo não aparece como uma doutrina «ideal» que celebra as perfeições de um dever-ser inatingido, mas como uma apropriação teórica e prática de um movimento real em curso, do seio de cuja contraditoriedade efectiva se projectam possibilidades reais de reconfiguração revolucionante e com um cunho de classe da produção do viver num sentido alargada e concretamente emancipador.

Como no Manifesto se pode ler, «As proposições teóricas dos comunistas de modo nenhum repousam sobre ideias, sobre princípios, que foram inventados por este ou por aquele melhorador do mundo. Elas são apenas expressões gerais das relações efectivas de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se passa ante os nossos olhos.»

A crítica e a transformação revolucionária comunistas enraizam, intervêm e realizam praticamente um trabalho interno à história, de configuração humana e humanizante das suas realidades. É de dentro do movimento real, e como instrumento para a sua compreensão crítica e transformação revolucionária, incarnada na prática esclarecida dos agentes que estão em condições de organizadamente as levarem a cabo, que o Manifesto é pensado.

Uma tarefa histórica

FRANCISCO MELO
— Tem sido observado que no Manifesto se faz uma exaltação do papel histórico da burguesia. Mas também se pronuncia a sua sentença de morte: partindo da análise das leis do desenvolvimento social e, em primeiro lugar, da lei da correspondência necessária das relações de produção e das forças produtivas, Marx e Engels chegaram à conclusão da inevitabilidade do derrube da burguesia. Mas eles não tinham de modo nenhum uma concepção mecanicista do determinismo histórico. Na verdade, ao evidenciarem o que «se processava diante dos seus olhos» — «crises comerciais que, na sua recorrência periódica, põem em questão, cada vez mais ameaçadoramente, a existência de toda a sociedade burguesa», a «epidemia da sobreprodução» em que a «sociedade se vê retransportada a um estado de momentânea barbárie» (que indignação não despertariam nalgumas boas almas de hoje estes horrores de há 150 anos?!), etc. —, Marx e Engels concluíam: «Mas a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trazem a morte; também gerou os homens que manejarão essas armas — os operários modernos, os proletários.» Quer dizer, a história age através dos homens, no caso vertente a classe operária, cujo papel de «coveira» da burguesia emerge das suas condições de existência no regime capitalista: ela é a mais explorada, a mais concentrada, a melhor organizada e a mais disciplinada — e, por isso, a mais revolucionária.

Um texto inovador

JOSÉ BARATA-MOURA — Do ponto de vista formal, este texto de 1848 é também inovador. Não é um catecismo – à maneira do que era então corrente nas elaborações teóricas do movimento operário para endoutrinamento de neófitos ávidos de decorar as respostas identificadoras de um credo. É um Manifesto, algo que se mostra, que se manifesta, que se dá a conhecer e também faz conhecer realidades que irreflectidamente se sofrem, mas que é possível transformar também, actuando sobre aquilo que as estrutura.

Contrariando a ideia de que o comunismo é um espectro de contornos misteriosos e sombrios – que todas as potências reinantes anatematizam e combatem, e que os próprios adeptos até difundiam e faziam avançar pelos canais clandestinos das sociedades secretas -, Marx e Engels entendem que, em articulação com o facto de ele ser reconhecido já, e apesar de tudo, como um poder, é chegado o momento de o comunismo vir à luz do dia.

No contexto da altura, esta foi, sem dúvida, uma orientação política fundamental.

Para vir eficazmente à luz do dia, para se tornar manifesto, o comunismo apresentava já uma base potencial de ancoragem social – o que não pode ser desligado do avanço das próprias relações capitalistas – e estava também em condições de apresentar ideias, pensamentos, linhas políticas de orientação para a luta de transformação de realidades que deixam de ser apenas sofridas para passarem a começar a ser conhecidas na sua génese, desenvolvimento e contraditoriedade.

Este é o significado teórico fundamental do Manifesto – decisivo na conjuntura, determinante de muitos outros aprofundamentos que não deixaram de verificar-se, inspirador para as tarefas que continuam a concitar a inteligência, o querer e o trabalho dos comunistas.

As posições perante o Manifesto

FRANCISCO MELO — O carácter revolucionário do Manifesto não poderia deixar de provocar «delimitações» de campos na própria avaliação que dele se fez e faz.

Alguns exemplos: em escrito recente, lembrava o Barata-Moura as palavras de Jean Jaurès, na linha do que poderíamos caracterizar como um revolucionarismo evolucionista, segundo as quais o Manifestoapenas conteria «pensamentos antigos de onde a verdade fugiu». Outra era a apreciação de Lénine, expressa poucos anos antes: «Este pequeno livrinho vale por tomos inteiros: ele inspira e anima até hoje todo o proletariado organizado e combatente do mundo civilizado.»

Isto nos finais do século passado-princípios do actual. Um século depois, estas posições manter-se-ão? Certamente que sim. O Manifesto será, por exemplo, rejeitado por aqueles que, perfilhando uma «estratégia evolucionista e possibilista, tendem a identificar conquistas democráticas e sociais possíveis sob o capitalismo com a própria noção de superação do capitalismo» (extraio esta caracterização da Resolução Política do nosso XV Congresso). Pelo contrário, considerá-lo-ão como fazendo parte do seu património teórico-político aqueles que, constatando que «o desenvolvimento do capitalismo neste findar de século está a conduzir a manifestas regressões de carácter social, democrático e cultural que confrontam a humanidade com o perigo de graves retrocessos civilizacionais», entendem que «a alternativa necessária é a superação revolucionária do capitalismo» (ibid.).

A perspectiva de luta

JOSÉ BARATA-MOURA — Se a minha leitura é correcta, o Manifesto não é, nem um texto moralista, nem um texto utópico. Enraiza na compreensão e no trabalho da história um projecto económico, político, social e cultural revolucionário de transformação, atravessado por uma inequívoca perspectiva de classe. É pelos interesses globais do proletariado que os comunistas se batem e «o movimento proletário é o movimento autónomo da imensa maioria no interesse da imensa maioria».

O capitalismo não é a encarnação do Mal, mas um modo de produzir e reproduzir o viver que se foi instalando nas sociedades humanas ao longo de toda uma génese e maturação, no decorrer da qual importantes desenvolvimentos, ao nível das forças produtivas, da organização política, dos valores e da cultura foram tendo lugar.

Todavia, num quadro de mundialização crescente, modelado à medida dos seus interesses e à sua imagem, em que (como já ao tempo de Marx era perceptível), por detrás de muitas «ilusões políticas e religiosas», aquilo que se implanta é «a exploração aberta, desavergonhada e seca». Deixada à solta, entregue a si mesma, a lógica do capital não pode deixar de produzir, alargadamente, efeitos desta natureza.

Por sua vez, o comunismo também não é a descrição utópica de um paraíso a implantar; o comunismo é a expressão contemporânea daquela luta de classes que atravessa e conforma a história de que há memória escrita (e de dentro da qual a própria burguesia moderna surgiu e se afirmou), e a história que continua a pôr em confronto os possuidores dos «meios sociais de produção» e os «trabalhadores assalariados».

Num contexto de exploração galopante e de crises recorrentes (de que as comerciais e de sobreprodução constituem apenas uma ilustração histórica), um revolucionamento real da estrutura em que assenta o viver social e as reconfigurações subsequentes (não apernas no domínio da economia) que terão de empreender-se, colocam como questão central incontornável a abolição da propriedade burguesa sobre os meios sociais de produção.

É essa a grande perspectiva de luta que o Manifesto nos lança, não sem, do mesmo passo, convocar a nossa atenção para a necessidade de implementar um poder político democrático, isto é, efectivamente ao serviço da maioria trabalhadora, de promover a instrução pública gratuita em bases universais, de cuidar da produção e da batalha das ideias, de dignificar a condição feminina, etc., etc.

Para o combate por estes objectivos (inscritos nas possibilidades que a própria realidade materialmente prepara e projecta) e para a consecução destes objectivos é indispensável uma ampla, esclarecida e organizada mobilização social. A base para essa mobilização social encontra-se dada pelas próprias condições dos «desprovidos de propriedade», mas todo um esforço teórico e prático de esclarecimento, congregação e movimentação tem que ser empreendido. É nesse movimento que o labor dos comunistas se inscreve, pelo seu empenho prático decidido e pela sua perspectivação teórica, num quadro nacional e internacionalista, no sentido de potenciar a dimensão política (e não apenas economicista) da luta de classes em curso.

O internacionalismo e a «defesa da pátria»

FRANCISCO MELO — Como já referi, no Manifesto Marx e Engels fundamentam a ideia do papel dirigente da classe operária na luta por um mundo sem explorados nem exploradores. O apelo internacionalista «Proletários de todos os países, uni-vos!» com que encerra o Manifesto é o corolário não apenas da igualdade internacional da condição de explorados dos proletários de todos os países, mas também da identidade internacional da tarefa de que a história os incumbe. Quererá isto dizer que devem fazer tábua rasa da luta no plano nacional? A afirmação «os proletários não têm pátria» poderá induzir uma interpretação nesse sentido. A frase que imediatamente se lhe segue mostra que se trata apenas de uma constatação fáctica:«Não se lhes pode tirar o que não têm.» E a continuação do texto (já Lénine tinha chamado a atenção para isto em 1916 em carta a Inessa Armand) é explícita para não permitir fazer de Marx e Engels advogados de um qualquer niilismo nacional: «Na medida em que o proletariado tem primeiro de conquistar para si a dominação política, de se elevar a classe nacional, de se constituir a si próprio como nação, ele próprio é ainda nacional, mas de modo nenhum no sentido da burguesia.» (Note-se esta ressalva: Marx e Engels tinham vindo a denunciar a «defesa da pátria» por parte da burguesia como uma capa hipócrita para esconder a sua opressão de outros povos.) Aliás, já páginas antes tinham afirmado sem equívocos: «O proletariado de cada um dos países tem naturalmente de começar por resolver os problemas com a sua própria burguesia.»

Para Marx e Engels não há, pois, qualquer contradição entre as tarefas nacionais e internacionais da classe operária. É com inteira fidelidade ao pensamento de Marx e Engels que ao constatar — e novamente utilizarei a Resolução Política do XV Congresso — que «os condicionalismos externos pesam cada vez mais na ordem interna dos Estados», o nosso Partido afirma: «Tal realidade não torna "caduca" a importância do espaço nacional como terreno incontornável da luta de classes […]. A defesa da soberania nacional, conjugada com a luta por relações de cooperação internacional livres das imposições das grandes potências, ganha mesmo maior importância. Simultaneamente, a cooperação e a solidariedade internacionalista, a acção comum ou convergente dos comunistas, dos progressistas, dos trabalhadores e dos povos, tornam-se imprescindíveis para a luta de todos e de cada um, para o avanço do processo libertador no plano mundial.»

Os comunistas e as alianças

JOSÉ BARATA-MOURA — O Manifesto contém uma análise crítica pormenorizada das diferentes correntes que ao tempo se reclamavam também de um ideário socialista ou comunista. O objectivo não era sectário nem paroquial. Não se tratava de identificar e numerar os eleitos, os esclarecidos, os bons. Tratava-se, sim, de mostrar a necessidade de não se perder de vista a questão essencial (a do derrubamento da propriedade burguesa) e de, a partir de uma convergência de fundo nesse propósito (que corresponde aos interesses dos assalariados no seu conjunto), promover a «ligação e o entendimento dos partidos democráticos de todos os países».

FRANCISCO MELO — No capítulo II do Manifesto, Marx e Engels expuseram lapidarmente a relação dos comunistas com o movimento operário e o movimento revolucionário em geral. Um primeiro aspecto: os comunistas «não têm nenhuns interesses separados dos interesses do proletariado todo». Daqui decorre que a acção dos comunistas não tem a sua justificação em si mesma, mas em servir o proletariado; no entanto, nessa acção em defesa dos interesses do proletariado cabe-lhes um papel de vanguarda. Nas palavras do Manifesto:«Os comunistas são, pois, na prática, o sector mais decidido, sempre impulsionador, dos partidos operários de todos os países; na teoria, eles têm, sobre a restante massa do proletariado, a vantagem da inteligência das condições, do curso e dos resultados gerais do movimento proletário.»

Ser vanguarda requer assim condições práticas e teóricas. É nesse sentido que, nos Estatutos do nosso Partido, ao afirmar-se que «o papel de vanguarda do Partido decorre da sua natureza de classe» se acrescenta que ele decorre também «do acerto das suas análises e da sua orientação política, do projecto de uma nova sociedade, da coerência entre os princípios e a prática e da capacidade de organizar e dirigir a luta popular em ligação permanente, estreita e indissolúvel com as massas, mobilizando-as e ganhando o seu apoio.»

Um segundo aspecto: gostaria de chamar a atenção para o que, em perfeita consonância com as concepções acima referidas, Marx e Engels dizem no capítulo IV do Manifesto:«por toda a parte os comunistas apoiam todo o movimento revolucionário contra as situações sociais e políticas existentes» e lutando «para alcançar os fins e interesses imediatos da classe operária», no entanto, os comunistas «no movimento presente representam simultaneamente o futuro do movimento». Estas duas asserções excluem qualquer forma de oportunismo – quer o que sacrifica os interesses imediatos ao objectivo final, quer o que sobrepõe o objectivo final às reivindicações imediatas – e estruturam a política de alianças dos comunistas. Seja-me permitido citar de novo a Resolução Política do XV Congresso: nela se diz que o Partido, nas suas alianças, «tendo em conta as diversas condições concretas históricas e objectivos imediatos, não abdica da individualidade e identidade próprias, nem sacrifica princípios centrais da sua natureza, ou o seu objectivo supremo de luta por uma sociedade socialista».

Ontem como hoje

JOSÉ BARATA-MOURA — A grande actualidade do Manifesto é, por um lado, a de que ele nos fala de uma realidade que, nos seus aspectos estruturais – e apesar e através de todas as modificações que sofreu e vem sofrendo -, ainda persiste; e, por outro lado, a actualidade do Manifesto reside em que ele tem de ser actuado: não se trata de recitar, de reproduzir, de aplicar mecânica ou automaticamente o muito que nele é dito; trata-se de, tendo em conta os caminhos inovadores que ele abre, tornar manifesto, no concreto dos nossos dias, as necessidades de compreensão, de críticas e de revolucionamento de que ele se alimenta e que ele projecta.

É pois um problema, um desafio e uma tarefa que, pelo menos aos comunistas de hoje, fica entregue.

Penso que Antonio Labriola, nos finais do século passado, resumiu bem a utilidade e a função do Manifesto, quando o caracterizou como «um instrumento de orientação que é simultaneamente uma arma de combate».

Escusado será lembrar que os instrumentos e as armas têm que ser «polidas», isto é, há que cuidar da sua manutenção, e que, por outro lado, são tal – instrumentos e armas – quando convenientemente manejados e utilizados.

FRANCISCO MELO — O capítulo III do Manifesto costuma ser silenciado pelos ideólogos burgueses. E não sem razões o fazem.

Não ouvimos nós dizer que hoje apenas se trata de saber como «gerir» o capitalismo? Ora, não tinham Marx e Engels estigmatizado já no Manifesto as teorias que procuravam «remediar os males sociais para assegurar a existência da sociedade burguesa»?

Não ouvimos nós dizer que estamos no «fim da história» visto que «a forma presente de organização social e política é completamente satisfatória para os seres humanos»? Ora, não tinham Marx e Engels posto a nu já no Manifesto o embuste da «burguesia, naturalmente, representar-se o mundo em que domina como o melhor dos mundos»?

E quando uns propõem uma «actualização do ideal social-democrata» ou «um relançamento do socialismo democrático» e outros apregoam uma espécie de Estado-Providência renovado «reduzindo as desigualdades, moderando os abusos, dando um contributo decisivo para uma solução moralmente aceitável dos principais problemas do mundo de hoje», como não nos lembrarmos imediatamente das palavras de Marx e Engels no Manifesto denunciando as tentativas de «tirar à classe operária o gosto por todos os movimentos revolucionários» pregando «melhoramentos administrativos […] que nada alterem na relação de capital e trabalho assalariado, mas que no melhor dos casos reduzam à burguesia os custos da sua dominação e lhe simplifiquem o orçamento de Estado»?

E quando os ideólogos da burguesia de hoje exaltam todos as virtudes da «economia de mercado» e da «livre concorrência» não estão a procurar convencer o proletariado a «que fique na sociedade actual» desfazendo-se «das odiosas representações que faz dela», como Marx e Engels no Manifesto acusavam de fazer os ideólogos da burguesia do seu tempo?

Mesmo aqueles que se quedam na indignação perante os «horrores» do capitalismo actual não merecem a recriminação de Marx e Engels no Manifesto de que «só do ponto de vista da classe mais sofredora o proletariado existe para eles»?

Para terminar: tal como há 150 anos, também hoje «o socialismo da burguesia consiste precisamente na afirmação de que os burgueses são burgueses – no interesse da classe trabalhadora»!


«Avante!» Nº 1263 – 12.Fevereiro.98