A situação do acesso à habitação na cidade de Lisboa, com a captura da cidade e da habitação por partes dos interesses especulativos e financeiros, atingiu, nos últimos anos, níveis de elevada gravidade social traduzida quer na produção de preços da habitação inacessíveis à esmagadora maiorias da camadas sociais, quer no processo de despejos e de exclusão de famílias e comunidades das habitações e lugares onde sempre residiram.
Sabemos como aqui chegámos:
1) a demissão dos vários governos de cumprirem os deveres constitucionais de garantia de acesso à habitação e que se traduziu na apresentação, em Portugal, de uma das mais baixas quotas de habitação pública em toda a Europa;
2) (consequentemente) a dependência do acesso à habitação através da produção de casas por parte da iniciativa privada
e, ainda,
3) com o recurso ao crédito bancário (bonificado), como fonte principal de acesso à habitação por parte da maior parte das famílias portuguesas, colocando o sector financeiro como um dos agentes nucleares da produção de habitação e colocando as famílias na dependência das vulnerabilidades dos mercados financeiros.
Deve ainda referir-se como elementos mais recentes na produção de um contexto de grandes dificuldades de acesso à habitação a regressão causada pela revisão da Lei das rendas, pelo PSD/CDS, e com a criação da famigerada Lei dos Despejos.
Este contexto foi também contemporâneo da abertura do mercado da habitação aos grandes fluxos de capitais internacionais, apoiados por regimes de estímulo ao investimento imobiliário para estratos populacionais de países europeus e de fora da Europa. Tudo isto conduziu o preço da habitação para níveis nunca atingidos no mercado da habitação em Lisboa.
Se há um relativo consenso relativamente ao contexto que nos trouxe até aqui, este consenso enfraquece quanto às vias de saída da crise habitacional que actualmente enfrentamos.
Para o PCP, a resolução do problema da habitação passa, nomeadamente, por uma forte intervenção na produção de habitação pública, pela implementação de estímulos à promoção de habitação social e cooperativa e pela implementação de mecanismos que garantam o acesso a uma habitação a custos acessíveis.
É no quadro deste referencial que o Grupo Municipal do PCP valoriza a elaboração de um Regulamento sobre o acesso à habitação municipal considerando ser este um importante instrumento de política pública municipal nesta área. No conceito que temos e defendemos do direito à cidade, a componente da habitação necessita de um enfoque especial e particularmente atento.
Reafirmamos que este regulamento apresenta, desde a sua versão inicial aspectos positivos, com os quais o PCP se identifica, como, por exemplo,
– o conceito de renda acessível estar alinhado com os níveis de rendimento dos agregados familiares;
– o nível de rendimentos dos agregados a ser tomado em consideração para cálculo da taxa de esforço ser o nível de rendimento disponível líquido;
– o princípio evolutivo da grelha de rendas e taxas de esforço de acordo com a evolução económica e social.
O PCP manteve ao longo do processo de discussão da proposta da Vereação uma postura que teve como objectivo contribuir para o reforço de aspectos que defendemos como nucleares na definição de um Regulamento Municipal deste tipo, designadamente, reforçando os objectivos próprios de política pública que se pretende afirmar com o seu estatuto e dimensão próprios e não dependente ou complementar do comportamento do mercado e das orientações de mercado.
Visámos, também, o reforço da coerência interna do Regulamento no sentido de este dar uma resposta integrada ao acesso à habitação com base em princípios comuns a respeitar pelas suas diferentes componentes (a renda apoiada, a renda acessível e o subsídio ao arrendamento).
As nossas propostas acentuaram ainda a necessidade de o Regulamento integrar regras de monitorização e de avaliação que sirvam para um adequado acompanhamento da implementação do Regulamento e dos seus impactos no acesso à habitação. Este aspecto é indispensável para garantir uma fundamentada actualização e revisão quer do normativo do regulamento quer dos parâmetros que conformam os regimes de acesso à habitação estabelecidos no regulamento.
As propostas do PCP foram feitas ainda no sentido de libertar o Regulamento de um dos aspectos que, efectivamente, adulteram, na nossa opinião, o racional do documento e, em particular, um dos princípios que valorizamos na orientação geral do quadro normativo que o regulamento apresenta. Referimo-nos ao princípio da autonomia do Regulamento, e de todo o seu normativo, face ao mercado e aos preços de mercado como referenciais de aplicação dos parâmetros que definem os regimes de acesso à habitação.
Neste sentido, o PCP apresentou uma proposta de alteração ao regime de atribuição do subsídio municipal de arrendamento que, do nosso ponto de vista, se encontrava alinhada com o estabelecido sobre esta mesma matéria (a subsidiação) na recentemente aprovada Lei de Bases da Habitação.
Propusemos, assim, que, por um lado, o subsídio fosse dirigido a duas situações tipificadas na Lei:
• Subsídio de arrendamento a actuais arrendatários que gozem de especial protecção no âmbito do arrendamento urbano e se encontrem em situação de vulnerabilidade socioeconómica, devidamente comprovada,
• Subsídio de arrendamento para fazer face a situações de vulnerabilidade socioeconómica e carência habitacional temporária ou iminente, devidamente comprovada.
Por outro lado, propusemos que o limite máximo de renda elegível fosse desligado de valores dependentes da renda de mercado, bloqueando desta forma a possibilidade de o subsídio vir a fomentar a manutenção de rendas com níveis especulativos.
As propostas do PCP não foram acolhidas nesta matéria e, neste ponto, a versão aprovada do Regulamento em reunião de Câmara e hoje aqui em debate apresenta, por um lado, um regime de subsídio de arrendamento com uma aplicação generalizada (não estão, de facto, definidas situações de vulnerabilidade para a aplicação do subsídio) e, por outro lado, define como limite da renda elegível rendas com níveis especulativos (20% abaixo da renda mediana de mercado o que, na cidade de Lisboa, corresponde a rendas especulativas).
Reafirmamos que o PCP considera esta opção do regime de subsídio uma opção incoerente com o resto do Regulamento. Pensamos que esta opção abre a porta à possibilidade de o subsídio ao arrendamento se transformar num instrumento de política de habitação municipal que alimenta a tendência de agravamento do afastamento dos níveis de renda face aos níveis de rendimento das famílias. Daí esta proposta de Regulamento Municipal não poder contar com o nosso voto favorável mas apenas a abstenção.
Continuaremos a intervir no sentido da defesa do direito à habitação e a defender mais políticas públicas neste domínio, mantendo que cabe ao Estado a oferta de habitação a preços acessíveis que influenciarão a necessária contenção na especulação que hoje domina o mercado imobiliário e que se sente, particularmente, na cidade de Lisboa.
Neste sentido, o PCP acompanhará com particular atenção e rigor os resultados da monitorização e da avaliação que o Regulamento estabelece.
Apesar das limitações assinaladas, relativamente ao regime do subsídio de arrendamento, o PCP considera que o Regulamento garante, na sua generalidade, o acesso das famílias à habitação com preços acessíveis.
Assinalamos, contudo, que o Regulamento não resolve, e esta não é a sua função, a questão da produção de habitação pública. E esta mantém-se como uma questão nuclear na resolução do problema da habitação na cidade de Lisboa. É, pois, necessário reforçar as linhas de provisão de habitação pública.
Assembleia Municipal de Lisboa – 12 de Novembro de 2019