António Pessoa, Grandes acontecimentos do século XX, A Revolução de Outubro

Grandes acontecimentos do século XX, A Revolução de Outubro

Por António Pessoa
Historiador

A Revolução de Outubro, ocorrida na Rússia em 1917, constitui um acontecimento histórico incontornável na luta dos povos pela paz, pela democracia política, económica, social e cultural, contra todas as formas de exploração, em especial contra o capitalismo liberal, sistema económico gerador de profundas diferenças sociais.
Mas este evento, contra o que muitos querem fazer crer, não é um episódio fortuito, obedecendo, antes sim, à lógica de desenvolvimento do processo histórico russo.

A Revolução de 1905

Desde os primórdios até à revolta de 1905, a Rússia foi dirigida por governantes, oriundos da aristocracia imperial, autocratas sempre, déspotas iluminados, por vezes, que nunca se conseguiram libertar do perfil ditatorial, autoritário, repressivo e reaccionário que ao longo do processo histórico sempre os caracterizou. Rodeando-se de conselheiros a quem o epíteto de conservador, não seria mais que um insulto, os soberanos russos estiveram mais interessados em expandir fronteiras, procurar a todo o custo saídas para o mar ou em aniquilar inimigos cujos interesses colidissem com os seus. Toda e qualquer reforma processada teve, como pano de fundo, o objectivo de desenvolver e consolidar as bases materiais e humanas que lhes permitissem entrar na roda viva da conquista do poder global.
Nutrindo um ódio visceral à Revolução Francesa e às suas ideias, nunca se lhe vislumbrou uma réstia de abertura à corrente liberalizadora que varreu a Europa, ao longo do século XIX, nem sequer um assomo de simpatia pelo movimento de independência da Nação grega, que tanto sensibilizou as restantes nações ocidentais, não deixando nunca de, pelo contrário, se confirmar como pilar rígido e voluntário de quantas Santas Alianças se constituíram.
Manifestando um total desprezo pela melhoria das condições de vida das populações, pelos seus direitos, liberdades e garantias, não surpreende que a sublevação do movimento popular tivesse sido jugulado, no domingo sangrento de 1 de Janeiro de 1905, quando as forças da ordem atiraram sobre manifestantes indefesos, causando mais de mil vítimas.
Os partidos da oposição, em especial o Partido Social Democrata, criado por Plekhanov em 1898 e dividido em Bolcheviques e Mencheviques desde 1903, e o Partido Social Revolucionário, fundado um pouco mais tarde, divididos quanto aos objectivos e à missão do partido, não conseguiram mais do que responder com um apelo à greve geral que redundou num fracasso total.
A Revolta de 1905 não constituiu mais do que um ensaio geral da Revolução que iria ter lugar doze anos depois.

A guerra de 1914-1918

Após o Congresso de Viena de 1815, que marca a queda de Napoleão e da própria França, a Inglaterra passou a exercer uma supremacia incontestada no Sistema Mundial, graças ao domínio da tecnologia de ponta conhecida na época, consequência da 1ª revolução industrial, o que lhe permitiu projectar poder por todo o globo. Porém, no final do terceiro quartel do século XIX, o Sistema Internacional altera-se, consideravelmente, com a unificação e constituição das novas nações alemã e italiana.
No final da centúria, a supremacia da Inglaterra começa a ser contestada pelas novas potências emergentes, sobretudo pelos Estados-Unidos e pela Alemanha, sem perder de vista que o Japão e a Rússia já se tinham alcandorado às posições da França e da Áustria-Hungria e que a intervenção da própria Itália nos assuntos europeus tinha que ser levada em conta.
A aproximação das novas nações às actuais tecnologias, produtos da 2ª revolução industrial, faz pensar que o acesso ao poder global deixou de ser uma impossibilidade e que a formação de impérios similares ao inglês deixou de ser um sonho, para se tornar realidade. Daí que uma nova partilha do globo em zonas de influência se tornasse necessária e que a guerra se considerasse inevitável.

A Revolução democrática-liberal de Fevereiro 1917

A Rússia não estava preparada para suportar uma guerra prolongada. No Verão de 1914 os quadros foram dizimados, sem possibilidades de serem substituídos, a inferioridade em artilharia era notória e as fábricas não conseguiam satisfazer mais do que um terço das necessidades. No Inverno de 1915-1916, o exército conseguiu evitar o aniquilamento, mas viu-se obrigado a abandonar a Polónia, a Lituânia e a Galícia, perdendo metade dos efectivos.
O sistema económico decompôs-se, os preços agrícolas e industriais subiram em flecha, os salários não os podiam acompanhar e o movimento grevista explode. Só em 1916, ultrapassou um milhão de aderentes.
Em Petrogrado, o Governo não responde e o Czar apaga-se. O poder está na mão da Czarina sob influência de Rasputine. Quando este é assassinado, a violência redobra e a oposição legal, embora dividida, agrupa-se em volta da 4ª Duma, formando uma frente, cujo cimento é, agora, o ódio aos Romanov.
Em 23 de Fevereiro, retomada a ligação com a oposição ilegal e em resposta à falta de alimentos e às medidas, preconizadas pelo Governo, de distribuir cartões de racionamento, o movimento popular vai inundar as ruas das cidades principais, exigindo a demissão do Executivo e do Czar. No dia 24, a maior parte das fábricas entrou em greve e a manifestação engrossou. Em 25, o cortejo, agora já organizado pelos Bolcheviques, confrontou-se com as forças militares e, enquanto os soldados estabeleciam diálogo com os manifestantes, os oficiais insistiam nas ordens de atirar sobre as populações. Os tiros disparados por algumas metralhadoras causaram mais de oitenta vítimas, entre os populares. Na noite de 26 para 27, as praças amotinaram-se, em todos os quartéis da cidade, contra os graduados e nessa mesma manhã, juntaram-se à multidão, apoderando-se das armas do arsenal e deitando fogo ao tribunal civil.
Coube ao Regimento de Pavlovski, comandado por subalternos, entrar, sem resistência no Palácio de Inverno, arrear o estandarte imperial e substituí-lo por uma simples bandeira vermelha, forçando o Czar Nicolau II e Miguel II, seu presumível sucessor, a abdicar em 1 de Março.
Em cinco dias, a revolta popular tinha posto fim a uma dinastia que durara mais de trezentos anos.

A Revolução Socialista

A Rua impôs, desde logo, a constituição de um Soviete, que acabou por se formar com uma direcção menchevique, incluindo socialistas revolucionários, personalidades sem partido e bolcheviques e cuja primeira acção foi legitimar o novo governo seleccionado pela Duma.
O movimento soviético alastrou rapidamente. Em 17 de Março já eram quarenta e nove cidades que o tinham adoptado e, cinco dias depois, o número tinha aumentado para setenta e sete, não contando com os sovietes de camponeses e soldados. Tendo como pano de fundo a guerra, que se continuava a desenrolar, a Rússia passava, agora, a ser governada por dois poderes paralelos, isto é, o Governo e o Soviete de Petrogrado, ao qual se deviam federar todos os restantes, ambos com a missão de gerir interesses antagónicos de grupos sociais muito diferenciados que iam dos camponeses aos operários, das classes aristocráticas aos soldados, passando pelos estrangeiros.
Satisfeitas as aspirações básicas, em Abril, a situação agudizou-se em torno da solução a encontrar para pôr fim à guerra. Depois da crise, com a expulsão de Miliukov, o elemento mais belicista, o executivo foi remodelado com elementos pertencentes ao Soviete, conservando o príncipe Lvov a Presidência. Chegou-se à conclusão que o caminho correcto residiria na procura da paz, sem anexações nem contribuições, no reforço do Exército e na sua democratização, evitando assim o aniquilamento da Rússia e dos seus aliados. Das poucas vozes contrárias, é justo salientar a de Lenine que, regressado recentemente à Rússia, advogou, nas suas "Teses de Abril", a oposição frontal ao Governo provisório, pela paz e pela transferência de todo o poder para os Sovietes.
Passadas seis semanas, goradas as negociações de paz com as potências estrangeiras e agudizada a confrontação entre o patronato e os trabalhadores dos principais centros de produção, entre camponeses e proprietários e entre os povos das diferentes nacionalidades e o Governo, o movimento popular regressa às ruas protestando contra a inércia de que os dirigentes davam mostras. Nem a realização do primeiro Congresso dos Sovietes, ainda dominado por mencheviques e socialistas revolucionários, desmobilizou o movimento. Em 18 de Junho, convocada, em primeiro lugar, pelos soldados bolcheviques, à qual aderiu, de imediato, a direcção do partido, de novo, a multidão manifestou ao Governo a sua insatisfação. Pela primeira vez, os bolchevique eram os senhores da rua.
A partir daqui a contra-revolução começa a levantar a cabeça, animada pelo Partido dos Cadetes, pelos oficiais do Estado Maior, pela igreja ortodoxa e pelos cossacos. Em 2 de Julho, sob a ameaça dos rumores de uma contra-ofensiva alemã, os ministros cadetes do Governo demitem-se e as massas populares descem, de novo, à rua para insistir nos seus protestos, proferindo insultos e ameaças não só contra o Governo, mas também contra o Congresso dos Sovietes, acusando-o de conluio com aquele, por não ter aproveitado a oportunidade que se lhe deparava para assumir o poder. O confronto armado inevitável, que teve lugar no dia seguinte, colocou frente a frente os marinheiros de Kronstad, os soldados amotinados e parte dos manifestantes, de um lado, e as tropas fieis ao Soviete e ao Governo, do outro, com um resultado de mais de 40 mortos e 80 feridos.
A reacção antibolchevique não se fez esperar, Lenine teve que fugir para a Finlândia, face às acusações de ser um espião alemão, muitos bolcheviques foram presos e o movimento revolucionário e o partido cairam em descrédito.
No rescaldo, o príncipe Lvov encarregou o menchevique Kerenski, que aparecia como a principal figura dos sectores moderados, de formar o novo Governo, o que acabou por conseguir, não sem que tivesse deparado com inúmeras dificuldades, em virtude dos sectores conservadores e reaccionários desejarem, ardentemente, aniquilar os bolcheviques e acabar, de vez, com os Sovietes.
Kerenski começou a sua governação organizando, no terreno, instituições de alternativa aos Sovietes, tais como os conselhos administrativos dos departamentos e distritos e os conselhos municipais, apoiando os sindicatos e as cooperativas e envidando todos os esforços na constituição da Conferência de Estado de Moscovo, espécie de assembleia consultiva, a realizar naquela cidade, onde a influência bolchevique era diminuta.
Sem a presença dos bolcheviques que se recusaram a participar, a Conferência de Estado foi palco do confronto entre Kerenski e o general Kornilov, novo comandante supremo do exército, nomeado pelo primeiro e que em pouco espaço de tempo se tinha tornado no herói da contra-revolução. O Presidente do Conselho ainda desta vez teve a arte de conquistar a Assembleia, arvorar-se em campeão da esquerda e adiar, para Agosto, a decisão do conflito entre os dois.
Mas para derrotar o general traidor, o Governo teve que se socorrer do apoio popular e operário e dos bolcheviques como tropa de choque que reduziram o golpe a nada, gritando como palavras de ordem "Luta contra Kornilov, nenhum apoio a Kerenski".
Estas acções permitiram ao partido bolchevique sair da clandestinidade e reorganizar-se, demonstrando à sociedade trabalhadora que a melhor solução para os problemas que a apoquentavam residia no desenvolvimento da dialéctica entre o pensamento de Lenine, a actividade do partido, o movimento de massas, em consonância com a direcção dos Sovietes. Esta estratégia foi facilmente apreendida, logo que as populações se aperceberam que os culpados do golpe militar não seriam castigados, que os terrenos nunca seriam distribuidos pelos camponeses e que a paz não seria alcançada a breve trecho. A dinâmica que se gerou, levou Trotsky, muito próximo do partido, a ser eleito, em 9 de Setembro, presidente dos Sovietes e conduziu o movimento a conquistar, a partir da capital, a maioria nos Sovietes de inúmeras cidades, nomeadamente, Moscovo, Kiev e Saratov.
Embora dividida acerca da questão da tomada do poder (antes ou depois do II Congresso dos Sovietes, a realizar em 25 de Outubro), a direcção do Partido Bolchevique nunca deixou de tomar as medidas necessárias para esse efeito, nomeadamente, a constituição de um centro militar revolucionário, constituído por cinco membros e a criação de uma organização militar autónoma, emanada do Soviete de Petrogrado, isto é, o Comité Militar Revolucionário de Petrogrado.
Como se sabe, na reunião do dia 10, acabou por vencer a tese de Lenine, que tinha reentrado clandestinamente em Petrogrado no dia 7 de Outubro, de lançar a ofensiva antes da realização do Congresso, talvez por medo de que o Go-verno se retirasse para Moscovo, deixando Petrogrado à mercê da ofensiva alemã.
Na noite de 24 para 25, obedecendo às ordens do Comité Central do Partido, instalado em Smolny, as forças revolucionárias foram, a pouco e pouco, ocupando as posições indicadas no plano de operações. As pontes foram controladas pela guarda vermelha, na hora do render das sentinelas, a substituição das autoridades nos correios e telégrafos foi feita em nome do Soviete, as estações dominadas, sem que o Governo se apercebesse do que estava a acontecer. Nas primeiras horas do dia 25, já toda a cidade se encontrava nas mãos dos insurrectos, sem que uma só gota de sangue se tivesse derramado, com excepção do Palácio de Inverno que continuava a resistir, mas cuja resistência o cruzador "Aurora" se encarregou de calar.
Reunido algumas horas antes, o II Congresso dos Sovietes tinha dado a maioria aos bolcheviques. De 673 delegados, 390 eram bolcheviques, 160 socialistas revolucionários e 90 mencheviques. De imediato, foi eleito um governo só de bolcheviques, com Lenine à cabeça, cujas primeiras medidas es tabeleceram a aprovação do decreto pela paz e a abolição da grande propriedade, com a entrega das terras aos comités agrários. A revolução tinha ganho a sua aposta.

O significado actual da Revolução de Outubro

Parece à primeira vista que, na actual sociedade caracterizada pelo enorme desenvolvimento tecnológico, assuntos como a Revolução de Outubro deixaram de ter cabimento, devendo ser remetidos e arquivados, de vez, num passado histórico que nunca mais voltará, só passíveis de poder ser desenterrados por saudosistas de qualquer modelo po lítico, ou outros, que não conseguiram fazer vingar. Em reforço desta ideia, os príncipes e arautos do capitalismo libe ral têm-nos enchido os ouvidos de que as revoluções já não fazem sentido, pois o avanço tecnológico tudo resolverá, agora que foi destruído e humilhado o grande inimigo russo, causador de todos os grandes males da Humanidade.
É hoje claro que isto não passa da grande mentira do nosso século, pois ao folhearmos o Relatório de Desenvolvimento Humano de 1999, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, vê-se que, afinal, nos últimos dez anos, o sistema capitalista não conseguiu inverter a lógica da conquista do poder global, do lucro a todo o custo, da centralização das empresas e da concentração cada vez maior dos rendimentos em menos mãos. Não querendo maçar com números, torna-se, agora, transparente que a fortuna de alguns milionários, cada vez em menor número, é equivalente ao PIB do continente africano e que a fortuna de algumas centenas, muito poucas, iguala o rendimento anual de 45% da população mundial.
Numa sociedade em transição para um novo modelo, de que ainda não se vislumbram os contornos, nada está definitivamente adquirido, nem a liberdade, nem a democracia, muito menos a aproximação económica e ainda menos a segurança social e o emprego. É, pois, necessário encontrar as formas de luta adequadas, pela sua consolidação e desenvolvimento.
Enquanto subsistirem desigualdades gritantes, sustenta das por poderes autocráticos, arbitrários ou ditatoriais, o direito à revolta é não só justo como ainda impreterível e é por isso que a Revolução de Outubro, como a Revolução Francesa ou o 25 de Abril e como tantas outras, no que significa lutar pela dignidade do cidadão e pela melhoria das suas condições de vida, continuam a constituir marcas actuais e indeléveis na memória das populações, que podem, por ora, estar adormecidas, mas que, em qualquer momento, qualquer chispa ou centelha pode acordar.
Chiu, deixem ouvir… Que rumor é esse, de passos mal calçados, que muito ao longe, embora de uma forma ainda silenciosa e tímida, se começa a fazer sentir?

"O Militante" – Nº 244 – Janeiro/Fevereiro 2000