Algumas questões sobre a luta pelo Socialismo no século XXI
Comunicação apresentada no II Encontro Internacional “Civilização ou Barbárie”, realizado em Serpa em 5,6 e 7 de Outubro de 2007.
Francisco Melo
I
O socialismo não é uma doutrina ideal dogmática, é um projecto que, inscrito como possibilidade na própria dialéctica da realidade existente, é necessário elaborar teoricamente e configurar na prática em circunstâncias históricas determinadas, enquanto fase de transição para o comunismo
Logo nos seus escritos de juventude Marx criticou as teorizações comunistas então existentes, as quais se apresentavam como construções do futuro válidas para todos os tempos, como não passando de meras abstracções dogmáticas, contrapondo-lhes uma perspectiva verdadeiramente revolucionária: «não queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas encontrar, a partir da crítica do mundo velho, o mundo novo» (1) . Também o seu companheiro F. Engels chamava a atenção para o carácter não doutrinário do comunismo: «ele não parte de princípios, mas de factos» (2) . E explicitava: «O comunismo é proveniente da grande indústria e das suas consequências; do estabelecimento do mercado mundial; da concorrência desenfreada que com este se dá; das crises comerciais sempre mais poderosas e mais gerais, que agora se tornaram já completas crises do mercado mundial; do engendramento do proletariado e da concentração do capital; das lutas de classes entre proletariado e burguesia que daí decorrem. O comunismo, na medida em que é teórico, é a expressão teórica da proletariado nesta luta e a apreensão teórica conjunta das condições de libertação do proletariado.» (3)
Estas posições metodológicas de Marx e Engels (de que demos apenas exemplos entre muitos outros que se poderiam dar: recorrentemente os afirmarão ao longo da sua vida) encontrarão expressão nessa obra genial de ambos que é o Manifesto do Partido Comunista. Nela, expõem a «nova concepção do mundo», materialista e dialéctica, doravante pública e claramente assumida como enformando a orientação programática do movimento comunista, concepção que eles próprios e, depois deles, Lénine e o movimento operário e comunista internacional desenvolveriam e enriqueceriam, tendo em conta as novas características do desenvolvimento histórico do modo de produção capitalista e as experiências e ensinamentos da construção do socialismo.
Segundo essa concepção — o marxismo-leninismo — o socialismo e o comunismo não são produto das ideias de quaisquer «melhoradores do mundo» nem uma fatalidade histórica, mas encontram-se inscritos como possibilidade nas contradições do modo de produção capitalista que as classes exploradas, e em primeiro lugar o proletariado e o seu partido político, têm que conhecer e agir sobre a sua dinâmica de modo a elas próprias configurarem, nas circunstâncias históricas concretas, uma nova sociedade liberta da exploração.
II
As propostas teóricas e as formas de intervenção prática dos comunistas resultam da consideração do movimento histórico real. E essa consideração mostra-nos insofismavelmente que o capitalismo não pode assegurar a utilização das forças produtivas no interesse de toda a sociedade, pelo que a transformação da propriedade capitalista em propriedade social pela superação revolucionária do capitalismo se torna uma necessidade exigida pelas próprias leis inerentes à produção capitalista.
É inerente ao sistema capitalista um cada vez maior desenvolvimento das forças produtivas e da internacionalização das relações económicas, do mercado mundial. Como disse Marx, é «a sua tarefa e a sua justificação histórica» (4) . Hoje em dia, para além das diferenças do contexto sociopolítico interno e internacional em que esse desenvolvimento se processa relativamente a períodos anteriores, sobressai, impulsionado pelas políticas neoliberais e a aplicação das novas tecnologias, o nível atingido de incremento das forças produtivas, de integração dos processos produtivos, de mobilidade dos fluxos financeiros e de diversificação das trocas comerciais, assim como a tentativa de privatizar bens comuns da Humanidade — a chamada «globalização» (que não é nem tão uniforme nem tão mundial como nos querem fazer crer).
Porém, é também inerente ao sistema capitalista a contradição entre o carácter social da produção e a apropriação privada das riquezas criadas. Daí que, desmentindo os apologistas das vantagens que resultariam da «globalização», o século XXI se inicie com as maiores desigualdades de sempre de riqueza e de rendimento, quer dentro de potências mais desenvolvidas quer em muitos países subdesenvolvidos.
A procura do lucro máximo foi o objectivo que sempre fez e faz correr o capitalismo. Seguindo as receitas neoliberais, essa procura conduziu ao retrocesso a um estado de «barbárie» (5) : agravamento da polarização social, precarização do trabalho, intensificação da exploração, liquidação de conquistas históricas da classe operária e dos trabalhadores, aumento da miséria, da fome e da doença, degradação do meio ambiente, ataques à democracia política (configurando uma crise do próprio sistema demoliberal), limitações à independência e soberania dos povos no interesse das grandes potências mundiais, agressões militares e intensificação do militarismo.
III
A «globalização» imperialista e as políticas neoliberais que a servem não puseram fim à luta da classe operária e dos trabalhadores, das massas populares e dos povos assim como à necessidade de partidos comunistas de vanguarda para conduzir a luta pelo poder nas condições concretas de cada país e como parte integrante do processo geral de emancipação social e humana.
Em meados do século XIX, Marx e Engels diziam que «por toda a parte os comunistas apoiam todo o movimento revolucionário contra as situações sociais e políticas existentes». E acrescentando que «em todos esses movimentos [os comunistas] põem em relevo a questão da propriedade» e «rejeitam dissimular as suas perspectivas e propósitos» revolucionários, alertavam contra os que pregavam «melhoramentos […] que nada alterem na relação de capital e trabalho assalariado» (6) .
No limiar do século XXI tais orientações permanecem válidas. Tendo em conta as consequências para os povos de todo o mundo da «globalização» imperialista, é de acentuar a cada vez maior necessidade de reforço do movimento comunista e revolucionário e de convergência das forças progressistas no plano internacional, mas reafirmando, em articulação dialéctica, que isso não significa abdicar da independência e da identidade própria na luta por uma sociedade socialista.
Se não foi Marx quem descobriu a luta de classes nem elas são uma invenção dos comunistas, por muito que isso custe aos apologetas do «fim da história», não basta, como Lénine salientou, «reconhecer» a existência da luta de classes. Só se sai para fora dos «limites do pensamento burguês e da política burguesa» (7) se se concluir desse reconhecimento a necessidade da conquista do poder político pela classe operária, pelos trabalhadores, por todos os explorados. Não como um fim em si mesmo nem para construir o socialismo por decreto, mesmo que seja um «décret du peuple» (8) , mas porque, como a Revolução de Abril mostrou, as massas populares em movimento podem levar a cabo profundas transformações económicas e sociais sem disporem do poder político, mas não podem defendê-las, prossegui-las e vencer a contra-revolução sem alcançarem o poder. Nessa tarefa os partidos comunistas, enquanto organizações de vanguarda, têm um papel decisivo.
IV
A experiência revolucionária mundial é um legado histórico que há que criticamente incorporar no projecto de construção do socialismo. As derrotas do socialismo nos países do Leste Europeu não significaram o fim do comunismo e não desapareceram as razões objectivas da luta pela superação do capitalismo e pela construção do socialismo de acordo com as condições concretas de cada país.
Com a Revolução de Outubro de 1917, pela primeira vez na história foi empreendida a construção de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem — a sociedade socialista. Extraordinários avanços e conquistas revolucionárias foram alcançados pelo povo soviético, que se traduziram também em poderoso estímulo e apoio solidário à luta dos trabalhadores dos países capitalistas, assim com à dos povos pela sua independência. As realizações da URSS e do campo socialista em benefício dos seus povos e dos povos de todo o mundo — nos domínios económico, social, cultural, político, diplomático e militar — são factos que ninguém pode seriamente questionar e que marcaram indelevelmente toda a história do século XX.
Face à derrocada do socialismo nos países do Leste da Europa, os ideólogos burgueses mais uma vez proclamaram que o capitalismo seria o «non plus ultra» da história (9) e que o «comunismo morreu». Mas como são ridículas, face ao panorama que nos apresenta o mundo criado pela «globalização» imperialista, as palavras de um dos mais conhecidos desses ideólogos, Francis Fukuyama, ao afirmar que «a história chegou ao fim» visto que «a forma presente de organização social e política é completamente satisfatória para os seres humanos nas suas características mais essenciais»! (10) O antigo primeiro-ministro de Portugal, António Gueterres, mostrou-se mais cristâmente modesto num congresso da Internacional Socialista. Sentenciando que «o comunismo falhou» propôs como linhas-mestras de Um Novo Sistema de Responsabilidade Colectiva «reduzir as desigualdades, moderar os abusos, dar um contributo decisivo para uma solução moralmente aceitável dos principais problemas do mundo de hoje» (11) . Não estamos perante um exemplo acabado daqueles «charlatães sociais», de que falava Engels em 1888, «que pretendiam remediar sem qualquer perigo para o capital e o lucro, todas as espécies de gravames sociais»? (12)
Não, o comunismo não morreu: o que fracassou, com graves consequências na caminhada dos povos para «o reino da liberdade», foi um modelo historicamente configurado de construção do socialismo e do comunismo que no seu desenvolvimento se desviou tragicamente das exigências que se propunha satisfazer e dos objectivos e ideais que proclamava pretender atingir.
As especulações sobre a morte do comunismo e as falsificações em torno das tentativas historicamente determinadas de construção de sociedades socialistas têm objectivos muito concretos. Barata-Moura resume-os de forma muito precisa: «uma erradicação do comunismo da consciência e do sentir dos homens, atrelando-o à simbólica representação de um sonho que se desvaneceu», «um embotamento da capacidade de luta daqueles que continuam a sofrer e a rejeitar a fatalidade da exploração», «uma oclusão e um estreitamento do próprio leque de perspectivas que a humanidade diante de si tem para as tarefas de configuração do seu futuro» (13) .
Não, o capitalismo não é capaz de satisfazer satisfatoriamente as necessidades humanas porque é por natureza explorador: a apropriação de trabalho não pago, quaisquer que sejam as formas de que se revista, é a essência do modo de produção capitalista. Por isso dizia ironicamente Marx que «igual exploração da força de trabalho é o primeiro dos direitos humanos do capital» (14)
Permanecem, pois, as razões para lutar por transformações radicais que visem a superação do capitalismo. O caminho não é único nem incondicionado, como sempre nos ensinaram Marx, Engels e Lénine (15) . Mas também não temos que partir do zero.
Notas
(1) K. Marx, Brief an A. Ruge, September 1843; in MEGA2,vol. III/1,
p. 54.
(2) F. Engels, Die Kommunisten und Karl Heinzen, in MEW, vol. 4, pp. 321.
(3) Ibid., id., p. 322.
(4) K. Marx, Das Kapital, III, 3, 15; MEW, vol. 25, p. 269.
(5) A expressão é de Marx e Engels no Manifesto!
(6) K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, Editorial «Avante!», 2.ª ed., Lisboa, 1997, pp. 72 e 66.
(7) V. I. Lénine, O Estado e a Revolução, in Obras Escolhidas em seis tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, t. 3, 1985, p. 215.
(8) Cf. K. Marx, A Guerra Civil em França, in K. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, t. 2, 1983, p. 244.
(9) K. Marx, Brief an Joseph Weydemeyer in New York, 5. März 1852, in MEW, vol. 28, p. 508.
(10) F. Fukuyama, The End of History and the Last Man, London, Penguin Books, 1992, p. 136.
(11) Congresso da Internacional Socialista de Nova Iorque, Setembro de 1996.
(12) Prefácio à edição inglesa de 1888 de O Manifesto do Partido Comunista(ver edição citada, pp.17-18).
(13) José Barata-Moura, Materialismo e Subjectividade. Estudos em Torno de Marx, Editorial «Avante!», Lisboa, 1997, p. 259.
(14) K. Marx, O Capital, Edições «Avante!-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, l. 1, t. 1, 1990, p. 333.
(15) Ver K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, edição citada, pp. 56 e 9-10; V. I. Lénine, «Sobre uma caricatura do marxismo e sobre o “economismo imperialista”», in Obras Escolhidas em seis tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, t. 3, 1985, p. 50.