Aurélio Santos, Pensar a História lembrando Outubro

Pensar a História lembrando Outubro
Escrito por Aurélio Santos  
Jul-2007

A interpretação da História, nas suas diferentes focagens, pode dar âncoras para ver no passado não só o que significou na sua época, mas o que para nós ficou como legado.
Noventa anos depois da Revolução de Outubro continua oportuno e actual assinalar quanto ela contribuiu para dar sentido universal à emancipação do homem e para concretizar e universalizar os direitos da pessoa humana.

Adiantando-se à sua época na marcha da História, ela teve traços de modernidade que trouxeram para a experiência concreta questões que, hoje com novos condicionalismos e expressões, continuam em aberto: como reorganizar uma sociedade privilegiadora de uns quantos? como torná-la integradora da grande maioria que a sustenta?

Com a Revolução de Outubro a Humanidade deu um grande passo no caminho para pôr fim ao pecado original da sociedade de classes – a exploração do homem pelo homem.

Iniciando a tentativa de levar à prática os objectivos que o movimento operário de inspiração revolucionária apontava como sua contribuição para o desenvolvimento da sociedade humana, os comunistas russos de 1917 confirmaram como força social de vanguarda aquele movimento operário anunciado no Manifesto do Partido Comunista como protagonista das grandes transformações revolucionárias da época contemporânea.

Assim foi.

O novo tipo de Estado criado com a Revolução de Outubro, o Estado proletário, pôs fim à ditadura política do capital na Rússia de então, ainda largamente conluiado com a aristocracia feudal. E, tal como Marx previra, a chegada ao poder da classe operária e a consolidação da nova forma de organização social de que ela é portadora permitiu abrir novas formas de pensamento político, trouxe novas experiências de organização da produção e do trabalho, novas ideias acerca da correlação entre princípios de classe e princípios comuns à humanidade.

Sem mesmo referir as fundamentais – aquelas que tornaram propriedade social os principais meios de produção e deram a terra aos camponeses – foquemos apenas algumas que, embora poucas vezes referidas, dizem também respeito aos direitos do ser humano e aos conceitos de democracia.

Com Outubro foi quebrado o quadro restrito dos Direitos do Homem e do Cidadão, que sendo bandeira libertadora na Revolução francesa ficaram depois petrificados nas malhas da democracia burguesa.

A democracia ganhou novos conteúdos. Alargou-se aos direitos sociais do homem: o direito ao trabalho, o direito à saúde, o direito ao ensino, o direito à habitação, o direito à protecção social. O Estado proletário não se contentou em proclamar esses direitos. Preocupou-se também em garanti-los.

O reconhecimento da plena igualdade a toda a população no exercício dos direitos políticos e sociais, foi outra contribuição revolucionária do Outubro proletário para uma concepção universal dos direitos humanos.

Até então, a democracia liberal dominante nos países capitalistas autodenominados civilizados reduzia-se fundamentalmente ao estatuto jurídico-institucional que entregava a governação e o exercício dos direitos cívicos e políticos a um núcleo restrito de eleitores. Desses direitos, incluindo os eleitorais, estavam excluídos não só o conjunto dos povos colonizados, que na época constituíam a grande maioria da população abrangida pelos Estados capitalistas, como também grande parte da população dos próprios países capita­listas – designadamente as mulheres, os analfabetos, cidadãos de baixos rendimentos.

No Estado proletário os direitos políticos e sociais foram reconhecidos a toda a população, homens e mulheres, independentemente do seu estatuto social, nível de rendimentos e grau de instrução, passando a abranger também todos os povos e etnias do país.

Por outro lado, a Revolução de Outubro afirmou a ideia de que o Estado tem responsabilidades na garantia aos cidadãos dos direitos sociais.

São concepções e realizações que marcam uma viragem histórica na luta pela plena realização e emancipação da pessoa humana e na universalização dos direitos humanos. São ideias que fazem hoje parte da própria concepção de uma democracia avançada.

A exigência de que o Estado cumpra essas responsabilidades e a luta pelo exercício desses direitos constituem hoje terreno da luta quotidiana de classes.

A concretização política e prática das concepções revolucionárias do proletariado ultrapassou os seus interesses próprios e confirmou a sua importância como expressão dos interesses de toda a humanidade.

Os impactos da viragem revolucionária imprimida pela Revolução de Outubro alargaram-se para além dos marcos da sociedade socialista em construção.

Os reflexos das novas concepções proclamadas e aplicadas com a perspectiva do socialismo, estimularam os trabalhadores nas confrontações sociais nos países capitalistas e deram-lhes maior peso político. Em confronto com a situação das classes trabalhadoras no mundo capitalista, tiveram um peso decisivo nas cedências que o capitalismo foi forçado a fazer na parte do mundo por ele dominada.

As lutas sociais, políticas e nacional-libertadoras clarificaram os seus objectivos, ad­quiriram um conteúdo superior, ganharam novo vigor e amplitude. As conquistas laborais e sociais ganharam terreno no próprio campo do capitalismo, principalmente após a derrota da versão nazi-fascista de imperialismo na II Guerra Mundial e da contribuição da URSS para essa derrota.

A força material, social e política do Estado criado pela Revolução de Outubro, além da contribuição decisiva que deu à derrota da máquina de guerra do nazi-fascismo, barrando caminho ao retrocesso da barbárie, permitiu durante uma importante época histórica a contenção do imperialismo. Tornou possível a liquidação do colonialismo e as grandes alterações registadas no panorama mundial no século XX.

Dentro das condições da democracia burguesa, as classes trabalhadoras foram alcançando e defendendo importantes conquistas políticas e sociais.

A evolução na luta de classes, à escala nacional e internacional, levou o Estado capitalista a assumir funções sociais que, ao arrepio da sua natureza de classe, lhe foram impostas pelas classes trabalhadoras sob a forma de luta política.

A democracia, na consciência de largas massas, ganhou assim também um conteúdo social, e além de terreno da luta de classes passou a ser uma arma dos trabalhadores nessa luta. O que não significa que o capital tenha renunciado à sua dominação, tenha abandonado espontaneamente as funções económicas e políticas da sua dominação nas democracias burguesas, cobrindo-as com os véus ideológicos com que oculta a sua natureza.

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Experiência de valor universal da Revolução de Outubro foi também a acção de um partido com um projecto revolucionário de sociedade, com uma prática claramente assumida de partido de classe, independente, unido, estreitamente ligado às massas trabalhadoras e populares, capaz de as organizar, mobilizar e dirigir, ganhando o seu apoio para a luta revolucionária.

Lénine foi o inspirador e dirigente desse partido de novo tipo e deu uma contribuição decisiva para a definição do novo tipo de Estado e de sociedade que à revolução se propôs levar à prática. A sua contribuição para o desenvolvimento do marxismo justifica que os comunistas de todo o mundo tenham passado a designar como marxismo­-leninismo a teoria revolucionária da época do imperialismo e das revoluções socialistas.

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A construção do socialismo revelou-se todavia mais difícil e complexa do que esperavam Marx e Lénine. Causas internas e externas, erros graves, desvios e perversões, práticas políticas e formas de exercício do poder que falsearam o ideal comunista, um «modelo» que se afastou do projecto de construção do socialismo, levaram à derrocada da URSS e dos regimes socialistas no Leste da Europa.

Mas os erros, insucessos, derrotas e desvios sofridos no processo humano para a realização do projecto revolucionário de Outubro não podem fazer esquecer os muitos êxitos económicos, sociais e culturais alcançados, nem o seu legado de profundas mudanças na consciência social.

Fazer a análise e a crítica das causas que levaram nos anos 80 à derrota da primeira experiência histórica de construção do socialismo à escala mundial não é ceder às pressões dos inimigos do socialismo que procuram denegrir, caluniar, destruir tudo o que em nome do socialismo se fez e faz.

Os objectivos dessa campanha são fomentar a resignação ante as ofensivas da recuperação capitalista e imperialista, intimidar os defensores do socialismo, apagar a esperança.

Não pode ser descurada a necessidade de estudar e aprofundar as condições e causas do colapso dessas experiências de construção do socialismo, nem os erros e desvios do modelo em que se apoiaram. Designadamente quanto a questões como o papel da democracia e sua ligação ao socialismo, quanto às formas e condições do exercício do poder, quanto à participação dos trabalhadores e das massas populares no processo, quanto ao papel e função de um partido revolucionário numa sociedade em transição para o socialismo. Mas a essa análise temos também de juntar outros aspectos que a experiência hoje disponível já nos impõe: a dos efeitos e conteúdo da contra-revolução capitalista nesses países e da evolução dos partidos comunistas que confundiram renovação com mudança de identidade e de natureza.

A experiência comprova o erro de ceder às pressões que procuram denegrir, caluniar, destruir, tudo o que em nome do comunismo se fez e faz. Não só por justiça histórica, é inaceitável que se denigra o papel decisivo para o progresso da sociedade humana que a Revolução de Outubro, a URSS e os comunistas tiveram nos avanços revolucionários e civilizacionais do nosso tempo.

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O papel da União Soviética na história da nossa época é confirmado pela actual ofensiva que o capitalismo está a desencadear, aproveitando a favorável correlação de forças para recuperar terreno, intensificar a exploração e procurar em muitos casos, em nome da «modernidade», voltar a impor condições idênticas às do princípio do século XX.

Ou seja: antes da Revolução de Outubro…

Como Outubro continua actual!

Com a perda da URSS foi quebrada uma correlação que mantinha em contenção as forças mais agressivas e as formas mais brutais do capitalismo. Desembaraçado da alternativa representada pelo campo socialista, o capitalismo desencadeou à escala mundial uma violenta ofensiva para fazer voltar atrás a marcha da História.

Intensifica a exploração dos trabalhadores e a espoliação dos povos. Proclama e impõe as suas leis como horizonte inultrapassável e incontestável não só da vida económica como no conjunto da actividade humana.

Nos próprios países capitalistas mais desenvolvidos os modelos económicos e sociais são reestruturados em detrimento dos trabalhadores. As estruturas de controlo da economia e de protecção social, conquistadas com a luta, são desarticuladas.

As democracias burguesas confirmam-se como uma das formas de Estado com que o capital assegura a sua dominação política e económica. Como terreno da luta de classes reflectem a correlação de forças de classe no país e no plano internacional e, por isso mesmo, são um regime instável em que a classe dominante espreita todas as eventuais deslocações na correlação de forças para pôr em causa os espaços conquistados pelas classes dominadas.

Para o retrocesso do processo histórico contribui pesadamente a dependência de muitos trabalhadores, principalmente nos países de capitalismo desenvolvido, em relação aos partidos capitalistas e social-democratas, a subordinação da social-democracia às posições e dogmas do capitalismo, inclusive na sua versão neoliberal, bem como os preconceitos anticomunistas em muitas forças de esquerda.

Não podem subestimar-se também concepções ideológicas, orientações políticas, linhas programáticas e organizativas, formas e estilos de trabalho político e sindical que, abandonando os fundamentos, experiências e património da luta revolucionária, ou não tendo em conta as condições objectivas, retiram às classes trabalhadoras, às forças progressistas e revolucionárias, como a experiência tem comprovado, o seu papel de protagonistas da história.

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Os comunistas portugueses nunca negaram a solidariedade aos povos que tiveram a audácia de romper a dominação mundial do capitalismo.

Quem não tenha em conta o papel da Revolução de Outubro e da URSS para a luta revolucionária mundial não pode compreender o desenvolvimento do processo histórico da sociedade humana, com os seus avanços e recuos.

Não temos uma concepção determinista da História. Não ficamos parados à espera que mudem «os ventos da História».

Como disse Marx, a História não faz nada, não participa em nenhuma batalha; são os homens, com a sua acção e a sua luta que dão base material às transformações da História.

Assim fizeram os revolucionários que em 1917 ousaram lançar-se na luta por um projecto capaz de abrir novos horizontes ao futuro da humanidade.

Nesse projecto, renovado e actualizado à luz das experiências positivas e negativas hoje disponíveis, encontramos elementos indispensáveis para responder às necessidades do nosso tempo. E para mobilizar as energias humanas capazes de fazer o mundo retomar o caminho da História.