Resistente antifascista (*)
Alberto Vilaça
O Professor Ruy – eis como muitas pessoas se referiam a Ruy Luís Gomes, numa clara síntese do que ele tinha de popular e de cientista.
Não é este último o objectivo do presente artigo, mas o prestígio que granjeou como matemático notável não deixou de projectar-se e fundir-se no também alcançado através da sua actividade cívica e política.
Nascido no Porto em 5/12/1905, licenciou-se com 20 valores em Ciências Matemáticas, na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, aí se doutorando em 1928 e vindo a leccionar desde o ano seguinte na do Porto, onde passou a professor catedrático em 1933. Quer em Portugal, quer quando exilado na Argentina e no Brasil, destacou-se não só na sua carreira académica, com particular realce no âmbito da Física Matemática, e na abundante lista de obras científicas que publicou, como também extra-universitariamente nas iniciativas e organização de outras actividades nesse mesmo campo.
Por exemplo, tiveram grande impacto, em 1937-39, os seus artigos e a polémica com Gago Coutinho sobre a teoria da Relatividade, a que apareceram ligados outros nomes eminentes e publicações culturais como Seara Nova, Sol Nascente e O Diabo, em que se evidenciaram o seu nível científico e a sua isenção, assunto tratado nas cartas inéditas dirigidas a António Sérgio por Bento de Jesus Caraça e que tive oportunidade de divulgar e comentar no livro que escrevi sobre este último.
Como que herdeiro do espírito associativo e democrático de seu pai, António Luís Gomes – que foi o primeiro presidente da Associação Académica de Coimbra e membro do governo provisório da República –, desde cedo se destacou, mesmo só como professor, na formulação e defesa dos problemas, interesses e direitos dos alunos e dos jovens em geral, como dessa época deram testemunho Luís Neves Real e Virgínia Moura. E em 1935 apoiou claramente os primeiros professores universitários expulsos pelo governo de Salazar.
Por outro lado, tinha uma nítida consciência de quanto a própria actividade científica não pode desligar-se da realidade social. Mostrou-o bem na sua palestra sobre «O valor social da investigação científica», proferida em 6/5/1944 no Rádio Clube Lusitânia e em que, valorizando em simultâneo o trabalho intelectual e o trabalho manual, expunha e desenvolvia ideias basilares como as de que «uma descoberta é pois uma obra colectiva e do interesse colectivo – feita por muitos, a todos interessa e dela todos devem poder beneficiar» e «a actividade de cada um de nós deve ter como finalidade e como estímulo a melhoria das condições de vida de todos».
Mas terá sido só nesse mesmo ano que ele deu os primeiros passos na actividade política através do MUNAF. Em 8 de Outubro de 1945 assistiu à sessão fundadora do MUD no Centro Republicano Almirante Reis, em Lisboa, e, tendo sido o primeiro signatário do requerimento para a realização da primeira sessão desse Movimento no Porto, efectuada cinco dias depois no Cinema Olímpia, logo se tornou o presidente eleito da respectiva Comissão Distrital.
E foi mais ou menos num desses dois anos que, como testemunha o então seu assistente Jorge Delgado de Oliveira em cartas que igualmente publiquei naquele meu livro sobre Caraça, que Ruy Luís Gomes, embora sem aderir formalmente ao PCP, manifestou o desejo de ter um contacto regular com este. Como aí supõe e diz, o recado terá sido enviado por intermédio de Caraça e foi o próprio Jorge Delgado quem, por encargo de Pires Jorge, passou a assegurar, numa primeira fase, o contacto pretendido. Posteriormente não sei, mas é mais que plausível que – de forma explícita ou implícita – esse intercâmbio tenha passado a ser desempenhado por Virgínia Moura, assumida militante do Partido e que de forma sistemática apareceu desde então ao lado do Prof. Ruy nas suas lutas políticas.
Essas lutas, em que sempre se revelou um homem independente e empenhadamente unitário, vão por seu turno abrir caminho para numerosas prisões e outras perseguições contra ambos e outros dos seus mais próximos colaboradores. Entre estes, o marido dela – o arquitecto Lobão Vital – e o doutor José Morgado.
Salvo as duas últimas, são prisões com duração relativamente curta, de apenas dias ou escassos meses, mas evidenciam uma intensa sanha persecutória por parte da PIDE. São pelo menos dez desde 1945 a 1956 e os arquivos daquela polícia patenteiam ainda, além de vários outros de carácter interno, a existência de catorze processos-crime contra Ruy Luís Gomes.
A primeira dessas prisões teve mesmo um especial significado: ocorrida em Novembro de 1945, deveu-se ao facto de Ruy Luís Gomes, na sua qualidade de presidente da Comissão Distrital do Porto – tal como os seus colegas, igualmente presos –, ter recusado entregar às autoridades as listas assinadas pelos apoiantes do MUD naquela cidade, ao contrário do que ingenuamente foi feito em Lisboa.
E não tardou que voltasse a ser preso em 1946 por ligação ao MUNAF e no primeiro dia de 1947 por ter proferido algumas palavras no cemitério aquando do funeral de Abel Salazar, no Porto.
Poucos meses depois, em Maio, voltou a ser preso por ter protestado contra a prisão de uma aluna, a dr.ª Nazaré Patacão.
Começava a ser demais para o governo do ditador Salazar: seguiu-se um processo disciplinar e a demissão.
A actividade no MUD ia prosseguindo, como sempre e desde os anos trinta com a colaboração científica e agora também especificamente política entre o Prof. Caraça e o Prof. Ruy.
E também com a sua habitual solicitude para com os jovens, que nomeadamente se vê numa «Saudação à Juventude», de que é o primeiro signatário enquanto presidente da referida Comissão Distrital e que consta de um suplemento ao n.º 11 do Boletim Interno da Comissão do Norte dos Trabalhadores do MUD, datado de 5/4/1947. Aqui fica um curto excerto dessa mensagem: «Neste momento, que a Juventude Democrática do país está sendo perseguida, queremos prestar-lhe homenagem! Queremos saudar-vos, jovens trabalhadores, das cidades e dos campos, pois é do vosso seio que têm vindo os mais abnegados defensores do Povo e da Pátria!»
Ilegalizado o MUD, logo se constituiu uma nova Comissão Distrital, com Ruy Luís Gomes na vice-presidência e de apoio à campanha eleitoral de Norton de Matos. Por essa altura, já os nomes sonantes de muitos oposicionistas, entre os quais o dele, estavam cortados dos cadernos eleitorais. E no decurso da campanha, como aliás já antes, a par das importantes lutas políticas e acções de massas travadas contra o fascismo foram surgindo posturas anticomunistas e de desconfiança e falta de ligação para com as camadas populares por parte de figuras destacadas das áreas socialista e do velho republicanismo.
Nomeadamente no Porto, chegaram ao ponto de a todo o custo quererem impedir – e assim decidiram pois tinham a maioria – a realização do que veio a ser o grandioso comício da Fonte da Moura, realizado em 23/1/1949 e que reuniu cerca de 100 a 150 mil pessoas. Invocavam que não apareceria quase ninguém!
Ora foi precisamente na casa de Ruy Luís Gomes, e às 2 ou 3 horas da madrugada que se seguiu àquela decisão, que Virgínia Moura telefonou a Norton de Matos explicando o que se passava e convencendo-o de que o comício seria um êxito, logo tendo ele declarado que ia dar ordens para que o mesmo se efectuasse. Na reunião da Comissão Distrital do dia seguinte, com os da maioria já apertados e furiosos por motivo dessa ordem, a preparação do comício seguiu em frente.
E será interessante notar que foi precisamente a casa do Prof. Ruy Luís Gomes, já então tornado importante referência antifascista no Porto, que pouco tempo depois se dirigiu o pai de Álvaro Cunhal procurando saber notícias da prisão deste, ocorrida em Março, e precisamente na noite do dia em que a mesma foi divulgada. Possivelmente, teria até sido alertado pela dita divulgação, feita de forma inventiva pelo grupo de Virgínia Moura e outros amigos do Professor.
É sabido, mas vale a pena relembrar como isso se passou. Preso Cunhal no Luso, onde residia na clandestinidade, e levado em grande segredo pela PIDE para a sua sede no Porto, de imediato houve quem lá disso se apercebesse – uma mulher do serviço de limpeza e um preso –, tendo feito chegar a notícia àquele grupo de democratas. Alarmados e receosos pela sorte do dirigente comunista, logo urdiram a maneira de espalhar largamente a informação, assim frustrando o segredo policial. Para tanto fizeram publicar no jornal O Primeiro de Janeiro um anúncio (cito de cor) que dizia sensivelmente o seguinte: «Álvaro Cunhal Duarte agradece a todos os amigos que se têm interessado pela sua saúde na Rua do Heroismo».
O nome de Álvaro Cunhal acopulado com o do seu conhecido pseudónimo e a indicação conjunta da também conhecida rua da sede da PIDE não podiam deixar dúvidas de que fora preso e corria perigo.
Entretanto, desenvolviam-se esforços para a implantação de um movimento unitário que continuasse a luta democrática após a da candidatura de Norton de Matos à presidência da República. Tal, aliás, como expressamente fora decidido por aclamação no seu último comício, realizado no salão da Voz do Operário, em Lisboa e em 10 de Fevereiro, ao aprovar-se uma moção que preconizava a formação do que veio a designar-se Movimento Nacional Democrático.
Nisso se empenharam várias personalidades e as comissões de freguesia da candidatura, mas muitos dos velhos republicanos e dos da União Socialista e da Maçonaria bloqueavam essas tentativas, quer com esfarrapadas desculpas de carácter pessoal, quer – como já anteriormente – por não quererem comunistas, a quem chamavam «queimados», nas comissões que se formariam. Isto a pretexto de que a sua participação seria pretexto para a repressão policial… Partindo desse divisionismo, viriam mesmo a tentar, em vão, algumas formações políticas que privilegiadamente obtivessem o reconhecimento governamental.
Não obstante, em Abril veio a constituir-se o Movimento Nacional Democrático, de cuja Comissão Central sempre foi presidente Ruy Luís Gomes e que, embora com dificuldades para uma unidade mais alargada mercê do referido divisionismo e do crescente clima da guerra fria, encabeçaria ainda importantes lutas durante alguns anos. Mas sempre fustigado pela repressão policial, que de forma preferencial incidia sobre o prestigiado matemático e seus companheiros mais próximos.
De tudo isto se encontra relevantes descrições em directo nos livros de Virgínia Moura, Mulher de Abril, e José da Silva, Memórias de Um Operário, 2.º volume (este também com transcrição de numerosos documentos). Tal como, quanto a vários destes e de outros pormenores, diversos textos de José Morgado e um livro de Alexandre Babo.
Pontos altos dessas lutas, e também da sua repressão, incluindo agressões policiais e julgamentos da Comissão Central e outros elementos nos Tribunais Plenários, foram a candidatura de Ruy Luís Gomes à Presidência da República em 1951, como «Candidato do Povo e da Paz», e os documentos daquela Comissão Central Pacto de Paz e não Pacto do Atlântico! em Janeiro de 1952, ao avizinhar-se a reunião da NATO em Lisboa, e sobre a questão de Goa, em 1954, para a qual se defendia uma solução política e pacífica e a autodeterminação dos povos.
Logo em Dezembro de 1949, ocorrera a prisão dos membros da Comissão Central e depois, já em Abril de 1950, um primeiro julgamento de que saíram amnistiados mas tendo Ruy Luís Gomes e vários outros sido agredidos pela polícia quando, regressados de combóio ao Porto, seguiam a pé pela Avenida dos Aliados, acompanhados por grande multidão. Em Junho seguinte, novas prisões os atingiram.
Quanto à candidatura presidencial em 1951, propiciou um significativo apoio dos democratas de esquerda, nomeadamente do MND, do MUD Juvenil e do PCP. Todavia, foi rejeitada a sua aceitação pelo Conselho de Estado, composto por fascistas e que, por uma alteração legislativa de última hora e aplicada retroactivamente, passou a ter competência para apreciar a sua admissibilidade, até aí pertencente ao Supremo Tribunal de Justiça. Mas, antes de ser declarado «inelegível», ainda foi possível divulgar alguma propaganda e realizar algumas sessões públicas, de que ficou celebérrima a do Cine-Teatro Vitória em Rio Tinto (arredores do Porto), a que se seguiram violentas agressões da polícia a muitos dos participantes, nomeadamente Ruy Luís Gomes, Virgínia Moura, José Morgado e Lobão Vital, dos quais correram o país milhares de exemplares das fotografias em que aparecem entrapados depois de tratamento hospitalar.
Nos anos seguintes e além dos dois referidos documentos em defesa da Paz e consequentes prisões e julgamentos, importa registar a publicação de vários números de Unidade, órgão do Movimento, em 1953 a eleição de Ruy Luís Gomes e Maria Lamas (esta também pertencente à Comissão Central do MND) para o Conselho Mundial da Paz, em que já tinha assento um outro professor português demitido e exilado, Manuel Valadares. E nesse mesmo ano teve ainda lugar a atribuição do prémio Artur Malheiros pela Academia das Ciências de Lisboa ao destacado e perseguido dirigente democrático, defensor da Unidade e da Paz. Galardão motivado pela sua actividade científica, foi porém e também, em conjunto com aqueles atributos, fundamento para diversas homenagens e outras manifestações de solidariedade e apreço.
Nessa época intercalar-se-ia ainda mais uma pequena prisão que, além do habitual carácter odioso, teve algo de caricato. Ao depor como testemunha num julgamento em que eram réus vários membros do MND, foi mandado três dias para a cadeia do Limoeiro pelo presidente do Plenário de Lisboa por pretensa «falta de respeito ao Tribunal». Consistira ela no seguinte: perguntado por que é que os membros do MND consideravam que o governo de Salazar não era democrático, lembrou que o próprio ditador dissera em 1940 na Assembleia Nacional que «nos afirmamos, por um lado anti-comunistas e, por outro, anti-democratas e anti-liberais, autoritários e intervencionistas». Como ainda hoje se pode ver na p. 236 do 3.º volume dos seus Discursos e Notas Políticas!
A longa prisão pouco depois, iniciada em Agosto de 1954, foi acompanhada da acusação de «traição à Pátria» e com o agente do Ministério Público a lamentar que para tal não houvesse pena de morte. Foi interrompida ao ser interposto recurso da sentença vinda a proferir em Junho de 1955 pelo Plenário do Porto e depois continuada com a reapreciação do processo em Agosto do ano seguinte e prolongando-se até Setembro de 1957. Desenvolveu-se então um larguíssimo movimento de apoio e solidariedade, com inscrições murais em diversas localidades, mensagens e depoimentos de importantes personalidades nacionais e estrangeiras, inclusive de renome internacional – tal como já acontecera em 1945 e 1952 –, e até de alguns dos anteriores divisionistas, ou intervindo pessoalmente como testemunhas de defesa no julgamento. Recordo-me bem deste, pois fui uma delas, arrolado por Virgínia Moura, e nele se fez uma maciça demonstração da verdade dos múltiplos aspectos negativos da acção governamental denunciados pelos réus.
Disso foi dado desenvolvido relato, designadamente, num longo comunicado do MND e no Avante!, nos seus números de Maio e Julho de 1955.
Não se impediu a condenação de Ruy Luís Gomes e dos seus companheiros e, no que a ele respeita, sofreu uma pesada pena de dois anos de prisão, em que foi contado o período inicial de carácter preventivo. No segundo ano esteve encarcerado na Colónia Penal de Santa Cruz do Bispo, destinada a presos comuns de difícil correcção, e forçado ao convívio com eles, cerca de metade dos quais eram loucos ou semi-loucos.
Nos meses de liberdade que mediaram essas duas situações prisionais, ainda conseguiu editar uma pequena brochura sobre A Revolução Republicana de 31 de Janeiro. Era um tema de grande actualidade não só porque o governo procurava fazer esquecer a data, eliminando mesmo o respectivo feriado a partir de 1952, mas também pelo tratamento dado ao assunto, com perspectivas e fundamentos que, apesar da sua brevidade, ultrapassavam os mais correntios nos historiadores liberais.
Segundo as suas palavras finais e numa nítida conotação com as questões da Paz internacional, do Colonialismo e da Liberdade que estavam a discutir-se no julgamento, tratava-se «de uma revolução em que a luta pela independência nacional e pela liberdade anda estreitamente ligada à luta contra o imperialismo. E por outro lado constitui um exemplo bem significativo de como a unidade das forças democráticas e das forças operárias é condição essencial do triunfo do Povo. Nisto constitui o seu valor de antecipação, e o seu grande interesse».
A pena final aplicada no processo pendente abrangeu ainda uma elevada multa, a suspensão dos direitos políticos e liberdade vigiada por cinco anos. Nestas condições e tendo-se entretanto extinguido o MND após 1956 por não conseguir afirmar-se na sua luta pela legalidade e por uma maior abrangência unitária, quando Ruy Luís Gomes foi libertado em 19/9/1957 carecia pois de condições para uma actividade política normal.
Mas nem por isso deixou de, meses depois, tomar posição pública apoiando as candidaturas presidenciais de Humberto Delgado e Arlindo Vicente. Aliás, não sem que ao tempo tenham sido originados alguns equívocos por um telegrama de saudação enviado por ele, Virgínia Moura e Lobão Vital ao primeiro antes da fusão das duas candidaturas por acordo político dos dois candidatos e desistência do segundo – o que a meu ver se terá devido a alguma descoordenação entre a orientação unitária do Partido e a efectiva marcha dos acontecimentos.
Nessa mesma época, em Maio-Junho de 1958, recebia Ruy Luís Gomes um convite para ir dar aulas na Universidade de Bahia Blanca, na Argentina. Nas circunstâncias que se lhe haviam criado, aceitou e para lá foi em 8/9/1958. Porém, não sem que a PIDE tenha tentado impedi-lo recusando-lhe passaporte mas acabando por concedê-lo após reclamação e dizendo que o era a título excepcional.
Ali se manteve até 1962, ocasião em que passou a leccionar na Universidade Federal de Pernanbuco, no Recife (Brasil), de onde só regressou após o 25 de Abril.
Embora chegando a queixar-se inicialmente de um certo isolamento em Bahia Blanca, nunca deixou de manter contactos com os meios antifascistas portugueses e de tomar posições públicas solidárias com eles e defendendo a sua unidade de acção.
Nessa fase inicial chegou a ter em Bahia Blanca dois encontros com Henrique Galvão quando este preparava a acção do navio Santa Maria e valeu-lhe o regular recebimento de muitos jornais, recortes e outras notícias que do Rio de Janeiro lhe enviava um português de nome José Oliveira Carvalho e ligado à Associação Humberto Delgado, ambos também trocando opiniões políticas como se vê nas diversas cartas dos dois que estão depositadas no Centro de Documentação 25 de Abril em Coimbra.
Entre essas opiniões, avulta especialmente a de Ruy Luís Gomes, expressa na sua carta de 7/6/1961, em que – contrariando o ponto de vista do seu correspondente – dizia discordar «em absoluto» de um «plano sobre as colónias», então difundido por Delgado e que defendia uma solução federativa. E acrescentava: «os democratas portugueses devem afirmar peremptoriamente que reconhecem o direito de auto-determinação dos povos de África, pois de outro modo não se comportarão como democratas consequentes. Eu sustento essa posição desde o nosso processo de 1955-1957 (caso de Goa) e já aqui na América o afirmei novamente».
Ulteriormente, outras importantes posições veio a assumir no Brasil, mormente a favor da amnistia aos presos políticos e como também são exemplo duas cartas – logo divulgadas, mas pouco ou nada em Portugal – que redigiu e enviou juntamente com José Morgado ao secretário-geral da ONU em 12/4/1965 e em carta aberta ao cardeal Cerejeira, quando de visita ao Brasil, em 12/4/1968. Pela sua grande frontalidade mereceriam aqui transcrição integral, que porém a escassez de espaço disponível não permite. A primeira tratava do «desaparecimento» de Humberto Delgado e da «hipótese de crime», exigindo a «prestação de contas» pelos governos de Salazar e Franco. A segunda evidenciava o colaboracionismo do Cardeal com o regime de Salazar e confrontava-o com o dever de, mesmo assim, se pronunciar contra os numerosos atropelos aos direitos humanos pelo Estado Novo.
É, portanto, neste quadro que, quando ainda em Bahia Blanca, Ruy Luís Gomes terá vindo a Portugal visitar seu muito idoso pai mas, a partir de 1961, se o tentasse o que o esperaria era um mandato de captura pela PIDE. Veio este a ser anulado e substituído pela proibição de entrar no nosso país, em 1971, o que se concretizou quando, já em pleno aeroporto de Lisboa, foi obrigado a voltar para trás.
Foi assim impedido de presidir pessoalmente ao 3.º Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro, para o qual foi convidado em 1973.
O desejado regresso à Pátria só pôde pois ocorrer em 1974, o que sucedeu dias depois da Revolução juntamente com José Morgado. Em breve viajou um pouco pelo país e em Julho do mesmo ano, em Vila Viçosa – como que em homenagem a Bento de Jesus Caraça, o também seu colega matemático e companheiro de lutas pela democracia –, não deixou de ir ver e fotografar a modestíssima casa onde este nascera, conforme pelo próprio punho anotou no verso do original da fotografia então tirada e que, por amável deferência de sua viúva, se encontra em meu poder.
Pudera já igualmente recuperar a cátedra de imediato e, por aclamação dos milhares de pessoas que o aplaudiram na hora do regresso, fora escolhido para Reitor da Universidade do Porto, como tal logo sendo designado oficialmente e tendo mesmo, quando jubilado em Dezembro de 1975, recebido o título de Reitor vitalício.
Veio também a ser membro do Conselho de Estado e não deixou de prosseguir importantes actividades culturais e académicas, designadamente relacionadas com a Casa-Museu Abel Salazar, de que desde 1947 fora um activo promotor e dirigente, e ainda na presidência do Conselho Científico da Cooperativa Árvore e da Associação de Amizade Portugal-URSS.
Igualmente não lhe faltaram outras honrarias, como as saudações de vários deputados na Assembleia Constituinte, ao ser aposentado, a condecoração com o grau de Grande Oficial da Ordem da Liberdade pelo Presidente da República em 1981 e uma homenagem nacional com diversas realizações político-culturais em Abril de 1984.
Faleceu em 27 de Outubro desse mesmo ano, mas entretanto lhe competindo ainda as funções, porventura modestas mas de grande significado e valor simbólico de presidente da Assembleia Geral da URAP-União dos Resistentes Antifascistas Portugueses.
(*) Em 5 de Dezembro de 2005 passa o 100.º aniversário do nascimento de Ruy Luís Gomes, efeméride que O Militante assinala, neste e nos próximos números, com artigos sobre a sua figura de antifascista e de cientista.
«O Militante» – N.º 278 Setembro/ Outubro 2005