Actualidade de uma conquista de Abril
Albano Nunes
Do Programa do PCP constam cinco pontos fundamentais para uma «Democracia avançada no limiar do século XXI». E no segundo desses pontos, intitulado «O desenvolvimento económico assente numa economia mista, moderna, dinâmica ao serviço do povo e do país», sublinha-se o papel de um sector empresarial do Estado «abrangendo designadamente a banca, os seguros e outros sectores básicos e estratégicos da economia». O facto da situação nacional ter evoluído em sentido contrário com a ofensiva do bloco central de interesses contra o sector público e empresarial do Estado, não invalida este objectivo programático fundamental do PCP. É por isso particularmente oportuno assinalar o 30º aniversário das nacionalizações revolucionárias e reflectir sobre as graves consequências do processo de privatizações que continua a arruinar o país. Os artigos que O Militante publica neste e no próximo número, constituem uma contribuição para fortalecer a resistência e manter bem vivo um objectivo indispensável para a ruptura necessária com as políticas de direita de sucessivos governos do PS, PSD e CDS-PP.
No processo da revolução portuguesa há numerosas datas históricas e o 14 de Março de 1975 é uma das mais importantes e significativas (1) . Foi nesse dia que o Conselho da Revolução tomou a decisão de nacionalizar os bancos (2) e as companhias de seguros (com excepção das sociedades estrangeiras), dando início ao profundo processo de nacionalizações, que conduziu ao desmantelamento dos grandes grupos económicos que constituíram a base social de apoio do fascismo (Mello, Champalimaud, Espírito Santo e outros) e à liquidação em Portugal do capitalismo monopolista de estado. Pela primeira vez desde finais dos anos quarenta, um país da Europa conhecia nacionalizações revolucionárias dirigidas ao coração do próprio sistema de exploração capitalista.
Naturalmente que nem esta decisão nem o órgão que a adoptou (o Conselho da Revolução acabara precisamente de formar-se) caíram do céu. Uma coisa e outra decorrem das próprias exigências do processo revolucionário. Um processo que a dialéctica da intervenção revolucionária das massas e do golpismo reacionário acelerava e aprofundava.
Depois das derrotas do golpe Palma Carlos (Julho de 1974) e do 28 de Setembro da «maioria silenciosa», a derrota fulminante do 11 de Março spinolista acabou por conduzir ao resultado oposto ao pretendido pelos conspiradores fascistas, traduzindo-se num gigantesco passo em frente do processo democrático, dirigido já não apenas ao regime político, mas aos alicerces económicos e aos fundamentos classistas do sistema, conferindo à revolução portuguesa o conteúdo de uma revolução social profunda. E isto foi possível, não por qualquer súbita inspiração do novo órgão de poder político-militar, mas por corresponder a duas exigências capitais convergentes. A primeira, a da defesa da própria democracia, golpeando duramente a base económica dos seus inimigos principais: mais do que tradução prática de um programa ideológico, as nacionalizações corresponderam à necessidade vital de defesa das liberdades democráticas, tão duramente conquistadas com o 25 de Abril. A segunda, a das exigências dos trabalhadores em luta contra a sabotagem económica e a defesa dos seus postos de trabalho e direitos laborais e democráticos. Sem esta pressão fortíssima da “base”, que foi uma das características mais marcantes da revolução portuguesa (que teve como grande limitação nunca ter tido um governo realmente revolucionário), não teriam sido possíveis decisões tão avançadas como as tomadas a 14 de Março e posteriormente.
Aliás, bem antes dos decretos revolucionários correspondentes à nacionalização de tal ou tal sector económico e financeiro, já os trabalhadores, com as suas comissões de trabalhadores e sindicatos impunham, na prática, as maiores restrições aos movimentos e iniciativa do patronato, quando não assumiam eles próprios o controlo dos processos. O controle operário surgiu bem antes de ser consagrado em lei e depois constitucionalizado. Ficará para a história do movimento operário e sindical português o papel desempenhado pelos trabalhadores bancários no processo de nacionalizações em geral e da Banca em particular: saneando, logo após o 25 de Abril, administradores comprometidos com o fascismo; velando pelo cumprimento das primeiras medidas dos governos provisórios; desmascarando exportações ilegais de capital, desvios de fundos, ajudas a partidos fascistas e reacionários; instituindo, após o 28 de Setembro, um efectivo controle dos bancos. A assembleia geral de 3 de Janeiro de 1975 em que 5000 bancários decidiram pedir ao governo «medidas no sentido da nacionalização da banca» desempenhou um papel particularmente importante em todo o processo.
O concreto processo que conduziu à liquidação do poder dos monopólios e dos latifundiários em Portugal (a reforma agrária, de que não nos ocupamos aqui, é um processo que se desenvolve paralelamente ao das nacionalizações e com o mesmo sentido de classe e conteúdo revolucionário (3) ) é uma das mais extraordinárias confirmações da justeza da linha política do PCP e da sua capacidade de previsão, capacidade que nada tem de misterioso pois ela é o resultado dos seus critérios de análise fundados no marxismo-leninismo e da profunda ligação às massas e conhecimento da realidade portuguesa. E da luta perseverante e convicta pela realização do Programa da Revolução Democrática e Nacional adoptado no seu VI Congresso em 1965.
Ao contrário do que pretenderam e ainda pretendem os inimigos e adversários do Partido, não se tratou de um qualquer «voluntarismo» ou cópia mecânica da experiência alheia por mais bem sucedida que possa ter sido noutras latitudes. As nacionalizações, como aliás a reforma agrária e outras medidas revolucionárias, resultaram de um bem concreto processo de agudíssima luta de classes, brotaram naturalmente do terreno fértil do próprio processo libertador e das correspondentes exigências históricas de liberdade, progresso social e paz. Os trabalhadores confiavam no Partido e a classe operária aceitava naturalmente a sua direcção de vanguarda; mas isso só foi possível porque a própria dinâmica do movimento e a experiência das massas em luta por uma vida melhor coincidia nas suas traves-mestras com o Programa e a linha política do PCP. E isto é muitíssimo importante sublinhá-lo perante a indecente fúria privatizadora que aí está comandada pelos centros internacionais do grande capital. De autêntico esbulho e assalto à mão armada do património público e de mercantilização das funções sociais do Estado ou sua destruição pura e simples para rebaixar ao máximo os custos da força de trabalho.
Não, não se tratou de «imposição ideológica», nem de «cópia de modelo estrangeiro» (4) ou «populismo aventureiro». Foi uma grande realização de Abril, da classe operária e do povo português. Não é por ter sido praticamente destruída esta conquista e reconstituídos os grandes grupos económicos que a revolução liquidara que a sua importância e significado em termos históricos é menor. Nem só o que vence e se torna irreversível está no caminho certo do curso civilizador. Perante a profunda crise em que mais de 28 anos de políticas de direita mergulharam o país, crise em que avulta particularmente a destruição do tecido produtivo e a alienação de instrumentos fundamentais da soberania económica e política do povo e do país, é de grande importância o conhecimento da experiência da revolução portuguesa e sublinhar a necessidade, não só de combater com a maior determinação a entrega ao capital privado de mais empresas e serviços públicos, como de lutar pela recuperação de quanto se revestir de um valor estratégico. Um forte sector empresarial do Estado é de crucial importância para impedir o controle do poder político pelo poder económico, fomentar o desenvolvimento do país e assegurar a defesa da independência e soberania de Portugal.
A luta por estes objectivos é parte integrante da luta pela satisfação das mais urgentes exigências de justiça e progresso social, nomeadamente o combate à pobreza (mais de 2 milhões de pobres) e ao desemprego (mais de 500 mil desempregados), o aumento dos salários e pensões, a redistribuição da riqueza criada em favor dos mais fracos e desfavorecidos. Trata-se de aumentar acentuadamente a parte do trabalho no rendimento nacional, parte que tem vindo a descer continuamente e que se situa actualmente bem abaixo dos 50%. Mas trata-se também de defender o próprio regime democrático das perigosas investidas dos grandes grupos económicos que, acompanhando tendências de fundo do desenvolvimento capitalista no plano mundial, pretendem dominar directamente e por inteiro o poder político. A ofensiva de desmantelamento do edifício jurídico democrático, de que o Código do Trabalho ou a Lei dos Partidos são exemplos recentes, continua. Em plena campanha eleitoral ouviram-se de novo arrogantes reclamações dos patrões da alta finança em relação a uma nova revisão da Constituição da República perante o silêncio inquietante de um PS claramente comprometido com as políticas do capital.
Quando o mote central da campanha eleitoral do PS é a conquista de uma maioria absoluta, é oportuno recordar que foi precisamente um governo do PS, o primeiro governo constitucional dirigido por Mário Soares, que caracterizámos como “governo do PS sozinho mas de facto aliado à direita”, que desencadeou as hostilidades contra as conquistas da revolução, a começar pelas nacionalizações. E quando Freitas do Amaral corre a proclamar o seu apoio político ao PS, ao mesmo tempo que Paulo Portas acena a José Sócrates com possíveis entendimentos, não deve esquecer-se que a primeira coligação governamental do PS foi justamente uma coligação com o CDS-PP, o partido da extrema-direita então liderado por Freitas do Amaral que votara contra a própria Constituição.
Escrevemos este artigo antes de 20 de Fevereiro, num momento em que lutamos com confiança na possibilidade de alcançar um bom resultado eleitoral para a CDU, indispensável para uma mudança de rumo na vida política nacional. Lutamos para derrotar a direita e a política de direita. A experiência histórica mostra porém que, independentemente dos resultados e da arrumação de forças que as eleições determinarem, será necessário travar uma luta vigorosa com a intervenção persistente e combativa dos trabalhadores e das massas para alcançar a incontornável ruptura com as políticas de direita que a situação reclama.
(1) O decreto-lei de nacionalização da Banca tem a data de 14, mas a decisão foi tomada na véspera, dia 13 de Março.
(2) Já antes do 11 de Março se tinha efectuado a nacionalização dos três bancos emissores então existentes: de Portugal, Nacional Ultramarino e de Angola.
(3) No seu ponto máximo a reforma agrária nos campos do Ribatejo e Alentejo abarcou 1,2 milhões de hectares de terra e 550 Unidades Colectivas de Produção.
(4) Precisamente o inverso do que hoje acontece com a «cópia» e o inaceitável seguidismo do capital português e dos partidos que o têm servido (PS, PSD e CDS-PP) em relação aos ditames da União Europeia e às orientações neoliberais destruidoras inerentes ao processo de globalização capitalista.
«O Militante» – N.º 275 Março/Abril 2005