Filipe Diniz
(in Caderno Vermelho 14, Setembro 2006)
A arquitectura que se faz é visivelmente muito diversificada, o que não constitui problema nenhum.
Mas há dois problemas que merecem abordagem. Um é a arquitectura sem ideias. Outro, as ideias sem arquitectura.
O primeiro tem o seu paradigma, digamos assim, na arquitectura “terciário/cadeia de hotéis”. Não vale a pena perder-se agora muito tempo com ele, por desoladores e deprimentes que sejam os seus resultados. Cada edifício acéfalo construído é uma oportunidade definitivamente perdida.
O segundo é, está claro, todas as arquitecturas “Frank Gehry”, que, desde a inesquecível gestão Santana Lopes integrou Lisboa na sua disneylândia cosmopolita, não porque cá tenha construído, mas porque por cá, no mínimo, já vem facturando. E “frank gehry” aqui não é entendido como um indivíduo em particular, mas como uma tendência com expressão global crescente.
Nas últimas décadas a arquitectura foi objecto de uma mediatização sem precedentes e sem comparação com a de qualquer outra área artístico-industrial. E, como sucede com todas as actividades intensamente mediatizadas no contexto actual, daí resultaram um enorme empolamento da arquitectura enquanto imagem, a configuração de uma constelação restrita de referências, nomes e vedetas, e as tendências, só aparentemente contraditórias, para uma uniformização global nas abordagens e para uma exacerbada procura da novidade formal e da proeza tecnológica.
A arquitectura mediatizada é, no fundamental, a imagem arquitectónica da globalização capitalista: está em toda a parte, não pertence a nenhum lugar, e as suas decisões, tecnologias, recursos construtivos e formais vêm sempre de outro lado.
Como toda a imagem globalizada, não só é instantânea, como é indiferente que corresponda a um objecto material. O objecto existe, a partir do momento em que existe enquanto imagem.
As necessidades e formas de comunicação à obra alteraram-se radicalmente, e são, em muitos casos, subsidiárias dos mecanismos de mediatização. Compreende-se porquê: para todos os fins, sejam eles simbólicos ou simplesmente especulativos, num mercado global dominado pelo capital financeiro, o edifício constitui valor a partir do momento em que existe enquanto imagem, não no longo processo da sua construção material (processo, aliás, em que frequentemente sofre significativas depreciações).
Esta desmaterialização do processo construtivo é a metáfora perfeita do processo de desmaterialização da economia. Para a arquitectura, as consequências podem ser trágicas.
Porque as duas questões que este processo coloca continuam a ser centrais: pode sobreviver uma arquitectura cujo objectivo não seja a construção concreta? Pode existir construção concreta, arquitectónica, sem intervenção relevante da mão humana e dos “ofícios”?
Não são questões novas. A arquitectura da ilustração francesa do séc. XVIII colocou a primeira. Entre a atitude de Boullée (i) e alguns projectos actuais existe uma clara afinidade. A afinidade entre alguém que insistiu em assumir-se sobretudo com pintor e construções que são sobretudo, grandes esculturas habitáveis (Frampton). É manifestamente irrelevante que Boullée procurasse o efeito poético nos corpos regulares platónicos e no presente predomine o neo-expressionismo, a atitude é manifestamente idêntica.
Tal como são muitas as afinidades, inclusive formais, entre muitos dos objectos da arquitectura mediatizada e os objectos do primeiro modernismo, nomeadamente das cerâmicas e vasos em vidro Art Nouveau.
Se na secundarização do processo construtivo em Boullée podem encontrar-se os sinais de uma época em que as potencialidades produtivas do processo artesanal estavam esgotadas, mas em que a indústria mecanizada ainda não se desenvolvera, e na estética Art Nouveau é marcante a resistência à lógica da produção industrial em série, que sentido podem fazer as suas afinidades aparentes com a arquitectura mediatizada, inteiramente apoiada nos mais sofisticados meios tecnológicos? O facto de explorar e alargar de forma particularmente criativa os limites de processos tecnológicos de concepção e de mecanização da construção que permitem não apenas a edificação de construções singulares (um requisito essencial), mas que essas construções sejam constituídas de elementos singulares, em cuja produção material a intervenção humana é aparentemente irrelevante.
É possível robotizar integralmente a produção de um automóvel, mas, como observou certa vez um sindicalista, é impossível vender um automóvel a um robot. A construção civil corrente é altamente lucrativa porque na generalidade das empresas construtoras se verifica uma baixa composição orgânica do capital. Não admira assim, aliás, que o sector da construção civil seja o que mais tem resistido a processos de evolução tecnológica e de mecanização (e também, diga-se, aquele em que se verifica a mais elevada taxa de acidentes de trabalho), e o que, por essa forma, trata de contrariar a lei da baixa tendencial da taxa de lucro.
A arquitectura mediatizada permite ao capital romper com essa lógica. Por um lado, porque sendo embora tendencialmente imaterial, tem a existência suficiente para que possa integrar-se em todas as operações financeiras que essa existência desencadeie. Por outro lado, porque pode em cada lugar ser a afirmação, simultaneamente concreta e simbólica, de uma produção inteiramente desumanizada e desprovida de sinais da intervenção colectiva humana, cujo valor resulta da aliança ideal entre o “criador” e o capital financeiro.
É ou não é um mundo de sonho, aquele em que o trabalho humano se torne invisível, e em que o mundo surja povoado de objectos construídos por obra e graça da aliança entre as “ideias” e o capital?
i Etiénne-Louis Boullée (1728-1793). O seu “Essai sur l’art” formula uma concepção da arquitectura centrada nos seus efeitos sobre a sensibilidade, resultante de regras que serão comuns à arquitectura e a outras artes, como a pintura, cuja poética partilha. Boullée estabelece uma clara diferenciação entre arquitectura e construção (uma “arte secundária”)