Eis a grande tarefa que está posta, com toda a sua simplicidade crua, à nossa geração – despertar a alma colectiva das massas.
Ou ela a realiza e ascendemos a um estado superior de unidade, ou fracassa, e amanhã assistiremos a um novo gesto de renúncia e o individual continuará a sobrepor-se ao colectivo numa adulteração criminosa da moral social.
Precisamos, para não trair a nossa missão, de nos forjarmos personalidades íntegras, de analisarmos o nosso tempo e de actuar como homens dele. Como homens que sabem distinguir o fundamental do acessório, que, na resolução de um problema, não se deixam perder no emaranhado dele, nem cegar pelas nuvens de fumo que os interessados pela sua não solução a todo o momento e infatigavelmente lançam.
Dessas nuvens de fumo, tantas e de tão variados aspectos, quero referir-me hoje a uma apenas – a confusa questão das elites. Confusa e delicada.
Vejamos, em primeiro lugar, qual é, a este respeito, a tese corrente. Com pequenas variantes, pode exprimir-se assim. Em todos os tempos, o progresso da civilização, o florescimento das ciências, das letras e das artes, foi obra de uma elite, mais ou menos reduzida; e deve ser sempre assim – a massa geral da humanidade não é acessível a certas preocupações que só espíritos elevados sentem; a guarda e a propulsão das instituições culturais da sociedade deve ser portanto confiada a um grupo restrito, a uma elite, a qual, só, tem direito a orientar superiormente os destinos do agregado.
Muito bem. Analisemos agora com algum cuidado esta tese para ver o que nela se contém de verdadeiro.
Uma dúvida se forma, logo após o primeiro exame: as elites propulsionadoras, em cada período histórico, do desenvolvimento científico, literário, artístico, foram realmente aquelas que, nesse período, ditaram a forma de constituição da sociedade, a orientaram, regulam o seu funcionamento orgânico? por outras palavras, elite científica e cultural e classe dirigente, são a mesma coisa? ou, melhor ainda, a primeira está compreendida na segunda? Uma consulta à história fornece resposta imediata pela negativa.
É abrir esse grande livro e prestar ouvidos aos queixumes e protestos com que aqueles homens verdadeiramente de elite, aqueles que, alguns séculos mais tarde, dão o tom ao mundo da alma e do pensamento, respondem às perseguições que os seus contemporâneos das classes dirigentes Ihes movem.
Incompreensão completa duma forma nova de pensar, temor de que um ataque à rotina abale os alicerces de um poderio egoísta de natureza espiritual ou material, vários são os elementos que se conjugam para fazer desses homens um grupo à margem, que só à força de heroísmo consegue conservar aceso, e transmitir às gerações seguintes, o facho da cultura.
Passam-se ao menos as coisas de maneira diferente no século em que vivemos? Devemos confessar, em homenagem àquilo que temos como a verdade, que, apesar de as condições actuais de vida constituírem, dentro de certos limites, um meio mais propício para a luta de ideias, não deixa porém de ser certo que a actuação das elites, sempre que queira exercer-se contra os interesses da classe dirigente, está sujeita a perigos análogos aos de outros tempos.
Quando é preciso, queimam-se livros, demitem-se professores, fecham-se fronteiras, abrem-se prisões, e se na Indochina um povo pretende conservar a autonomia das suas instituições e defender-se contra a civilização do álcool que querem impor-lhe, lá estão os tribunais franceses para distribuir, com mão larga e generosa, em nome dos sagrados princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade, dezenas de condenações à morte (*) .
Mas, se a identificação de classe dirigente e elite cultural nunca se deu nem se dá, para quê o pretender estabelecê-la?
Razão evidente e única – porque a classe dirigente, não tendo que fazer de momento, nem necessitando, dessas antecipações geniais no domínio da ciência e da cultura (aos seus autores é dada a liberdade de morrer na miséria), precisa no entanto daquilo a que podemos chamar valores científicos e culturais de segundo plano, carece tomar posse do que da ciência vai derivando constantemente para as aplicações, a fim de adquirir uma base mais sólida de existência e domínio.
E como, por outro lado, ela sabe bem que mal vai ao seu poderio quando ele é exclusivamente de natureza material, fabrica, para seu uso próprio, um conceito novo de elite, deformador do verdadeiro, e, armada com esse conceito novo e servida por aqueles que se prestam a dar-Ihe corpo, pretende aparecer como suporte único do movimento cultural, relegando ao domínio do subversivo, a que é preciso dar caça, tudo aquilo que contrariar os seus cânones.
E devemos concordar em que tem realizado a primor a essa tarefa. O trabalho de submissão, de lamber de botas, da parte das chamadas camadas intelectuais, tem sido duma perfeição dificilmente excedível. Digamos, para irmos até ao fim, que os mais excelsos nesse mister são frequentemente aqueles que, partidos das camadas ditas inferiores, se guindaram, umas vezes a pulso, outras em acrobacia de palhaço, a posições que deveriam utilizar para defesa dos bens espirituais e que só usam para trair os seus antigos irmãos no sofrimento.
Problema grave, e tanto, que não faltam as vozes que, para o resolver, advogam um abandono da cultura por verem nela, não um meio de elevar, mas sim de diminuir a condição humana. Terão razão os que assim pensam? Conduz a civilização necessariamente a uma escravização do homem?
Para podermos responder a estas perguntas, temos que começar por definir os termos e pôr depois convenientemente o problema.
O que é o homem culto? É aquele que:
1.º – Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence;
2.º – Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano;
3.º – Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior preocupação máxima e fim último da vida.
Ser-se culto não implica ser-se sábio; há sábios que não são homens cultos e homens cultos que não são sábios; mas o que o ser culto implica, é um certo grau de saber, aquele precisamente que fornece uma base mínima para a satisfação das três condições enunciadas.
A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da liberdade.
E para atingir esse cume elevado, acessível a todo homem, como homem, e não apenas a uma classe ou grupo, não há sacrifício que não mereça fazer-se, não há canseira que deva evitar-se. A pureza que se respira no alto compensa bem fadiga da ladeira.
Condição indispensável para que o homem possa trilhar a senda da cultura – que ele seja economicamente independente. Consequência – o problema económico é, de todos os problemas sociais, aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar. Tudo aquilo que for empreendido sem a resolução prévia, radical e séria, desse problema, não passará, ou duma tentativa ingénua, com vaga tinta filantrópica, destinada a perder-se na impotência, ou de uma mão-cheia de pó, atirada aos olhos dos incautos.
Não deve também confundir-se cultura com civilização.
O grau de civilização de um povo mede-se pela quantidade e qualidade dos meios que a sociedade põe à disposição do indivíduo para lhe tornar a existência fácil; pelo grau de desenvolvimento dos seus meios de produção e distribuição; pelo nível de progresso dos seus meios de produção e distribuição; pelo nível de progresso científico e utilização que dele se faz para as relações da vida económica.
O seu grau de cultura mede-se pelo conceito que ele forma do que seja a vida e da facilidade que ao indivíduo se deve dar para a viver; pelo modo como nele se compreende e proporciona o consumo; pela maneira e fins para que são utilizados os progressos da ciência; pelo modo com entende a organização das relações sociais e pelo lugar que nelas ocupa o homem.
Assim, um povo pode ser civilizado e não ser culto e vice-versa. Não pode, por exemplo, comparar-se o nível desenvolvido de civilização do povo americano actual com o incipiente do povo ateniense do período áureo, como não podem comparar-se os seus respectivos graus de cultura, muito superior o deste ao daquele (**) . Entre um Péricles e um Hoover medeia uma distância enorme, aquela mesma que separa o povo que aplicava a lei do ostracismo para evitar que um indivíduo influente pudesse exercer coacção sobre a liberdade dos cidadãos, daquele outro povo em que há anos foi possível que um grupo de homens metesse outro homem, porque era revolucionário, dentro de uma gaiola e o andasse mostrando de terra em terra, a tanto por cabeça.
Definidos os termos, podemos agora resolver o problema posto – o problema do homem, unidade social, perante a cultura.
Se o desenvolvimento da civilização, entendida como acima, só por si, pode conduzir ao automatismo e à consequente escravização do homem, o que nos é mostrado pela civilização capitalista actual, é isso devido, não a um alto mas sim a um baixo grau de cultura que permite que os meios de progresso sejam utilizados num ambiente de completo abandono dos objectivos superiores da vida.
E esse abandono, e a adulteração que se lhe segue, só podem ser evitados pelo reforçamento intenso da cultura; esta aparece-nos assim como condicionador e correctivo constante da marcha da civilização.
Como se põe então agora a questão das elites? Evidentemente que o cultivo e progresso da ciência, bem como a sua aplicação à vida corrente da sociedade, hão-de ser sempre obra de grupos especializados – prospectores e realizadores; chamemos-lhe elites, se assim o quiserem – existem e existirão, como existem e existirão as elites das outras profissões e actividades.
Mas o que não deve nem pode ser monopólio de uma eIite, é a cultura; essa tem de reivindicar-se para a colectividade inteira, porque só com ela pode a humanidade tomar consciência de si própria, ditando a todo o momento a tonalidade geral da orientação às elites parciais.
Só deste modo poderá levar-se a bom termo a realização daquela tarefa essencial que atrás vimos ser o problema central posto às gerações de hoje – despertar a alma colectiva das massas.
Houve quem dissesse um dia que as gerações dos homens são como as das folhas, passam umas e vêm outras.
Está na nossa mão o desmentir o significado pessimista desta frase.
Só figuram de folhas caídas, para uma geração, aquelas gerações anteriores cujo ideal de vida se concentrou egoisticamente em si e que não cuidaram de construir para o futuro pela resolução, em bases largas, dos problemas que Ihes estavam postos, numa elevada compreensão do seu significado humano.
Essa concentração egoísta tem um nome – traição, e se hoje trairmos, será esse o nosso destino – ser arredados com o pé, como se arreda um montão de folhas mortas.
E não queiramos que amanhã tenham de praticar para connosco esse gesto, impiedoso mas justiceiro, exactamente o mesmo que hoje nos vemos obrigados a fazer para com aquilo que, do passado é obstáculo no nosso caminho.
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(*) Estas palavras foram escritas em 1933. Se o fossem agora é evidente que outros e mais dramáticos exemplos teriam sido escolhidos. Onde está a elite cultural alemã? Einstein? Freud? Onde está a elite que dirigiu o corpo hoje esfacelado da Checoslováquia? e a Espanha? (nota da 2.ª edição, 1939).
(**) Fala-se evidentemente, do tipo médio da classe superior num ou noutro caso. Se nos reportarmos às classes inferiores, não sei se haverá grande diferença entre a condição de um negro das plantações de algodão e a de um escravo grego, fosse ele escravo de um Aristóteles …