localizado no terceiro piso.
Durante um mês, trabalhei cerca de 11 horas por dia enfiado entre os grelhados, a máquina do café, as bebidas, as sobremesas e a caixa – onde o patrão não me gostava de ver porque não tinha a agilidade e a destreza de atender um número razoável de clientes que lhe enchesse os bolsos num determinado período de tempo. Bem, na verdade tinha problemas com a máquina registradora. Mas não só. Tinha problemas com os recibos que descreviam os pedidos mas que não explicitavam o nome do prato. Era algo como "prato do dia carne", "prato do dia carne 2" e "prato do dia peixe". Mal me chegavam às mãos devia gritar para os cozinheiros o nome dos pratos e a quantidade. Ou seja, não só tinha de saber o nome dos pratos, que não estavam nos recibos, como tinha de saber quantos pedidos de cada prato havia. Tudo isto parece muito óbvio e, provavelmente, é assim em todo o mundo mas quando queremos dar o nosso melhor e não conseguimos podemos sentir-nos realmente muito burros. Principalmente, quando ao mesmo tempo que se faz tudo isto se tem de tirar as bebidas, pôr o pão, colocar as sobremesas, tirar cafés, ver se as batatas já estão fritas, dar talheres a clientes que os deixaram cair, dar aquele guardanapo a mais e dizer que os molhos e os temperos estão em cima do balcão mesmo à frente do cliente.
Foi nesse ambiente, absolutamente caótico, que descobri pessoas extraordinárias que não só me ajudaram a superar as dificuldades para lidar com um meio desconhecido como me fizeram viver o valor imprescindível do trabalho colectivo. Mas também que por trás das fachadas das lojas do Colombo existe um mundo desconhecido corporizado por longos corredores de serviço que ligam os trabalhadores dos vários sectores. Um mundo que merecia ser resgatado para as páginas dos jornais por algum repórter da imprensa diária.
Provavelmente, conheceriam a raiva dos trabalhadores contra os capatazes e os patrões. Como a de Ricardo que veio do Brasil para melhorar a sua condição de vida. A ele e aos colegas, retiraram-lhes o pagamento dos feriados a dobrar. Juliano que pediu mais dois dias de férias pelos dois feriados que trabalhou ao preço de um dia normal vai ter de explicar à mulher que não vão poder estar tanto tempo juntos.Tanto tempo porque 48 horas são uma eternidade em comparação com a hora que, diariamente, convivem. Não é o caso de Joana, cabo-verdiana, que não tem namorado mas que gostaria de dormir mais do que as cinco horas por noite. É por isso que na hora e meia de pausa que tem à tarde estende cartões no chão do armazém e dorme sem medo das baratas que passeiam. Provavelmente, conheceriam a raiva de Catarina que veio de S. Tomé e Príncipe e trabalhou na limpeza para pagar o curso de ortopedia. Depois do estágio, ninguém a quis contratar e continua a esfregar as mesas e a recolher os tabuleiros sujos das esplanadas. Nunca deixou de lutar e esteve à frente da histórica greve que paralisou as trabalhadoras da limpeza no Colombo. Depois disso, foi alvo de um processo disciplinar e suspensa durante meses. Há pouco tempo, regressou ao trabalho e a empresa foi obrigada a pagar-lhe os meses em que esteve em casa. Mas neste mundo de raiva existe amor e Catarina recebe o carinho e a solidariedade massiva dos trabalhadores.
Também existe alegria porque essa é a única forma de suportar o tempo. Entre as piadas que se contavam havia uma que me agradava bastante. Miguel, um colega de balcão, costumava responder aos clientes que lhe pediam cerveja à borla com um "isso não pode ser porque senão o patrão não muda de carro no fim do mês". Por isso, recordo com alegria o dia em que não corrigi o Ricardo. E o prato do dia foi ‘Esparguete à Carbonária’.
Por isso, como prometido, dedico-lhes este texto.
[Naturalmente, embora o texto se refira apenas a factos reais, os nomes são fictícios.]